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Mapa dos tesouros

Pelas curvas da Estrada Real, a velocidade é o de menos. O que importa está no caminho: igrejas históricas, ruas de pedra, vilarejos escondidos e, claro, o tempero típico

Por Felipe Mortara
Atualização:
Sem asfalto, cheio de curvas e de natureza à vista: assim é o trajeto pelos 395 quilômetros do Caminho dos Diamantes Foto: Felipe Mortara/Estadão

Paraty ou Diamantina. Rio de Janeiro, Ouro Preto, Petrópolis. Pouco importa a origem, o destino e o sentido também. Subidas, descidas e serras são companhia por todo o caminho. Bem como fins de tarde deslumbrantes, cidades coloniais pouco reveladas e uma gastronomia de fazer pensar o tempo todo na próxima refeição. De carro, 4x4, moto, bicicleta ou até caminhando – não importa o meio. Ao percorrer os 1.600 quilômetros da Estrada Real, o que vale é o caminho em si. E, claro, a história revelada por ele.

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Originalmente traçada sobre trilhas indígenas independentes, a partir do século 17 a rota passou a servir para escoamento do ouro produzido em Minas Gerais até o porto de Paraty – de onde era levado para Portugal. Era do interesse da Coroa que estes caminhos fossem unificados e oficializados não só para garantir a vazão da produção, mas também para fiscalizar e cobrar impostos das riquezas extraídas. E assim instituiu-se a Estrada Real. 

Avancemos uns 400 anos no tempo. Depois de muito ouro, boatos, diamantes, inveja, escravos, dor, romances, escultores, causos, viajantes, tropeiros e mulas, o turismo passa a caminhar pela Estrada Real. Inspirada no caso de sucesso do Caminho de Santiago, entre França e Espanha, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) fundou o Instituto Estrada Real em 1999 e, com a ajuda de historiadores, retraçou o trajeto de outrora contemplando 199 municípios de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro.

São três os principais trechos: o Caminho Velho, de Paraty a Ouro Preto, o Caminho Novo, que separa o Rio de Janeiro e Ouro Preto, e o Caminho dos Diamantes, entre Diamantina e Ouro Preto. Além destes, o Sabarabuçu, uma extensão entre São Bartolomeu e Cocais, municípios próximos a Belo Horizonte. Um mar de chão e colinas separa o litoral das Minas Gerais e, portanto, não existe nenhum prazo ou ordem para cumprir o percurso. 

Cruzamos os 395 quilômetros da Rota dos Diamantes em cinco dias, a bordo de um 4x4. Já os motociclistas cabo-frienses Antigo e Tuca (na verdade, Erval Azeredo, de 67 anos, e Josias Lopes, de 53) começaram a desbravar a Estrada Real em 2012. “Primeiro fomos de Paraty até Cruzeiro (SP). No ano seguinte, de lá para Ouro Preto. E, este ano, estamos percorrendo em quatro dias o trecho final, até Diamantina”, conta Lopes. 

Já o desenhista Daniel Aquino, de 29 anos, que encontramos pouco depois de ele ter saído de Diamantina, preferiu ir a pé mesmo. “Planejo andar cerca de 30 quilômetros por dia. A meta é chegar a Ouro Preto em 15 dias”, previa.

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Modo de usar. “Como saber o caminho certo?” e “É possível errar?” são as perguntas mais frequentes. Porém, com o apoio norteador de 726 placas e 1.926 marcos de concreto de dois metros de altura espalhados a cada dois quilômetros e nas principais bifurcações, o viajante pode ficar tranquilo (mesmo!) para serpentear pelos caminhos que formam a Estrada Real. Quem ainda assim estiver inseguro, pode acessar o site institutoestradareal.com.br e baixar planilhas e mapas precisos. Caminhando, pedalando ou dirigindo com atenção, acredite: não dá para se perder. 

Evidentemente, quanto menos motorizado e experiente for o viajante, mais duradoura – e intensa, por que não? – a jornada. Considerando os 1.600 quilômetros de Diamantina a Paraty, é natural (e recomendado) que se divida o roteiro em trechos. Afinal, a velocidade é o de menos. O que importa é o caminho. 

Como 75% da Estrada Real é de terra, um veículo com tração nas quatro rodas facilita bastante. Em média, cinco dias bastam para percorrer, confortavelmente, os 395 quilômetros do Caminho Velho. Um carro convencional aguenta o tranco no mesmo período, porém sofreria desgastes consideráveis nos amortecedores e eixos. Motociclistas experientes podem até percorrer em menos tempo. 

A meu ver, a pé e de bicicleta são as formas mais ricas de saborear a jornada, proporcionando um contato mais visceral com o caminho. No pedal, ciclistas experientes precisam de pelo menos 10 dias. Caminhantes bem preparados devem reservar 15 dias – em média, a cada 30 quilômetros há uma vila para servir de ponto de apoio ou pernoite.

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Nos moldes do Caminho de Santiago, porém sem o aspecto religioso, o Instituto Estrada Real criou um passaporte, que deve ser carimbado nas paradas. Quem vai pelo Caminho dos Diamantes até Ouro Preto ou Diamantina precisa de pelo menos dez carimbos para ganhar um certificado de conclusão do trajeto. 

A novidade é que, desde ontem, estão ativos 17 pontos de carimbo no Caminho Velho – nesse trecho, são necessários 14 carimbos para conseguir o certificado. Tanto os passaportes quanto os certificados podem ser emitidos em Diamantina, Ouro Preto e Paraty. Uma lembrança carinhosa de sua própria história. 

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Ouro Preto

Aqui convergem os três principais caminhos que compõem a Estrada Real: o Novo, o Velho e o dos Diamantes. E a antiga Vila Rica tem até hoje motivos de sobra para se orgulhar de ter sido o mais importante centro econômico e político do Ciclo do Ouro. As primeiras levas de garimpeiros chegaram à região por volta de 1695, atrás das pequenas pedras que, desde 1823, passaram a batizar a cidade. Apenas em 1897 perdeu o título de capital mineira para Belo Horizonte. 

Hoje, Ouro Preto é um dos mais fortes símbolos do Brasil colonial e cidade turística mais pulsante de Minas Gerais. Por onde quer que se ande, exibe jovialidade e informalidade universitária, reforçada por uma vigorosa cena musical e portentoso carnaval de rua. Cabe menção a ótima gastronomia da cidade, um capítulo à parte. No entanto, prevalece a força de seu passado, estampado nas dezenas de bem preservadas e icônicas igrejas do período barroco brasileiro, que se espalham por suas ladeiras e bem cuidados museus, como o da Inconfidência e a intrigante Casa dos Contos. 

Catas Altas

O Arraial de Catas Altas do Mato Dentro cresceu em torno da capela de Nossa Senhora da Conceição, no começo do século 18. Hoje matriz, a imponente igreja predomina no centro da cidadezinha, porém tem companhias de respeito. A igreja de Santa Quitéria está no pictograma do carimbo da cidade, por seu cenário deslumbrante com a Serra do Caraça ao fundo. Por sinal, fica em Catas Altas o mais surpreendente refúgio natural de Minas Gerais, o Santuário do Caraça. 
A cidade também é reconhecida pelos seu vinho de jabuticaba e, mais recentemente, por suas cervejas artesanais. Peça para degustá-las no restaurante La Violla, na Praça Monsenhor Mendes, saboreando um filé à brasileira (R$ 62) ou um lombo mineiro (R$ 52). 

Cocais

No entorno da Capela de Santana cresceu o vilarejo onde, tempos mais tarde, nasceria José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, o Barão de Cocais, governador das Minas Gerais no século 19 e fundador de município de mesmo nome, do qual faz parte o distrito de Cocais. A igreja de Nossa Senhora do Rosário foi erguida originalmente no século 18, porém, o prédio atual é resultado de uma reconstrução realizada no século seguinte. Guarda imagens de dois santos negros: São Benedito e Santa Efigênia. O Solar da Ladeira, construído no mesmo período, hospedou Duque de Caxias em 1842. Bem pertinho, o Sobrado do Cartório é um dos mais belos e antigos edifícios do distrito, erguido pelo próspero comerciante Fernando Toco. Já o Sitio Arqueológico da Pedra Pintada faz jus ao nome, com centenas de pinturas rupestres com mais de 8 mil anos. Para garantir um almoço bem mineiro – e o carimbo no passaporte – o feijão tropeiro com carne de porco na lata da Pousada Vila Cocais é a pedida (R$ 49 para dois; pousadavilacocais.com.br).

Ipoema

Outrora chamada de Estalagem, Pouso Alegre, Aliança e Santo Afonso da Aliança, é hoje mais conhecida por Ipoema. Esse distrito de Itabira, a famosa terra do poeta Carlos Drummond de Andrade, carrega no nome os versos e festeja sua história com seu precioso Museu do Tropeiro (31-3833-9254). Bem estruturado, o acervo de 400 peças narra a importância histórica e cultural do tropeirismo, que durante séculos ligou arraiais levando alimentos e bens de primeira necessidade. Também faziam as vezes de mensageiros, carregando correspondências entre vilas e cidades. Suas tradições renderam hábitos enraizados até hoje na gastronomia mineira, como o (delicioso) feijão tropeiro. Antes de sair, não deixe de provar a boa cachaça à venda na lojinha. 

Itambé do Mato Dentro

Em tupi, “itambé” significa “pedra afiada” – uma alusão aos picos pontiagudos da Serra do Espinhaço, que povoam a paisagem da cidadezinha. A queda de 30 metros da Cachoeira Baixada das Crioulas esconde uma grande gruta onde, dizem, os senhores se encontravam com suas escravas. As três quedas da Cachoeira da Serenata só não surpreendem mais do que o cânion de 40 metros de largura e 70 de comprimento, por onde as águas do rio ganham força. A Cachoeira do Chiquinho, de cor esverdeada, também atrai visitantes. Uma boa base para desbravar a região é o distrito de Cabeça de Boi, com pousadinhas aconchegantes como a Lá no Tereré (31-9591- 4878; diárias desde R$ 80). No simpático Buteco do Sô Agostinho, o dono em pessoa costuma pegar um violão e receber os novos visitantes com cantoria. 

Morro do Pilar

O bandeirante Gaspar Soares começou a explorar ouro por ali em 1710, mas foi apenas em 1740 que a cidade passou a se chamar Morro do Pilar. Ali foi instalada a primeira fundição de ferro do Brasil a utilizar alto-forno, no começo do século 19. A Igreja do Canga ainda mantém características da época. Contudo, a cidade é uma das portas de entrada para o Parque Nacional da Serra do Cipó, inaugurado em 1984 e muito procurado por amantes do ecoturismo e de trekking. Seus 33.800 hectares se espalham também pelos municípios de Santana do Riacho e Itambé do Mato Dentro. Trilhas margeiam cânions e cachoeiras como a da Capivara, com duas quedas, uma de 40 e outra de 60 metros, além de piscinas naturais. Os mais aventureiros podem arriscar um rapel ou canyoning nos 70 metros da Cacheira Véu da Noiva (Receptivo Belas Gerais, serradocipogeraes.com.br). Os percursos, de até 12 quilômetros, podem ser feitos a pé, de bicicleta ou a cavalo. A vegetação chama a atenção pela diversidade e a fauna se caracteriza por espécies endêmicas, em particular alguns anfíbios e insetos.

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Conceição do Mato Dentro

Nos últimos anos, o município tem sofrido com a exploração do minério de ferro, que comprometeu bastante o autodenominado título de capital do ecoturismo no Estado. A indústria mineradora praticamente ocupa todas as vagas hoteleiras da cidade para alojar funcionários, tornando dura a vida dos turistas.
Ainda assim, há belezas. Como a igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição, originalmente erguida por Gabriel Ponce de León no início do século 18, que se destaca pela simplicidade. E uma das grandes joias mineiras tem ali seu ponto de apoio mais próximo: a Cachoeira do Tabuleiro, com 273 metros de altura, a terceira mais alta do País, também conhecida como Cachoeira do Coração, pelo formato do paredão rochoso de onde despencam suas turbulentas águas. Para chegar até lá, 1h30 de trilha em campos rupestres.
Outra opção, com acesso mais fácil, é a Cachoeira Rabo de Cavalo, com “apenas” 120 metros de queda. Já na Cachoeira do Zé Cornicha, aproveite as piscinas naturais, mas tome cuidado com as pedras submersas. A visita a todas requer companhia de guia (contrate um na Secretaria de Turismo e Meio Ambiente; 31-3868-2423).

Santo Antônio do Norte

Fundado no século 18 por aventureiros que procuravam ouro no Rio Santo Antônio, o pequenino arraial – e bota pequenino nisso – de Tapera chamou a atenção do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, em 1817. “Uma só rua, à extremidade da qual fica a igreja que constitui a aldeia.” Desde então, aparentemente pouca coisa mudou, a não ser o nome, que passou para Santo Antônio do Norte – mas todo mundo, menos os mapas, só conhece por Tapera. A igreja de Santo Antônio, assim como a maior parte das simples casinhas, foi construída de adobe e taipa, no século 18. Já a singela capela Sant’Ana fica sobre um morro, mesclando-se à paisagem do povoado, que é uma boa parada para um almoço ou lanche da tarde. Pergunte pelo Curral de Pedras, que além da beleza, vale por seu valor artístico e histórico. Já o Mirante da Escadinha é um dos mais belos da Estrada Real. 

Serro

Perto das outras cidades da região, Serro parece uma metrópole, com um centrinho onde carros disputam poucas vagas na Praça João Pinheiro. Ali começa a escadaria de 58 largos degraus que leva os mais esforçados até a capela de Santa Rita, de onde se tem uma senhora vista. No primeiro fim de semana de julho ocorre tradicionalmente a Festa do Rosário, com manifestações culturais e de sincretismo religioso, como marujada, catopês e caboclos. 
No entanto, a fama da cidade veio de seu queijo homônimo, fabricado há mais de 200 anos – muitos atribuem seu sabor distinto ao clima. A cooperativa de produtores CooperSerro (38-3541-1001) tem uma boa lojinha no centro para vender os mais de 2 mil queijos produzidos diariamente. E a Secretaria de Turismo, ponto de carimbo, fica numa casa restaurada na rua principal, próxima ao Sobrado da Prefeitura, construído no fim do século 19 para hospedar d. Pedro II, que visitaria a cidade. No entanto, com a proclamação da República, isso nunca ocorreu.

Milho Verde

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Ô lugarzin gostoso, sô. No século 18 sediou um registro, espécie de alfândega onde se controlava o trânsito de pessoas – e de pedras – que passavam pela Estrada Real. Lá foram instalados quartel e posto fiscal com a função do combater o contrabando. Hoje bem mais pacato, o vilarejo no alto de uma linda colina chama atenção pela pitoresca Capela de Nossa Senhora do Rosário, que parece plantada num amplo descampado. O Café Veredas (38-8845-0067) vale uma parada por seu pastel integral de legumes (R$ 4). Além do seu carimbo, garanta um mergulho na cachoeira do Moinho, a dois quilômetros do centrinho, com piscinas naturais e duas grandes quedas, além dos antigos moinhos d’ água que ainda funcionam – e dão nome ao lugar. Nos arredores, vale dar um pulo até o vilarejo de Capivari, onde chama a atenção o grau de parentesco direto que todos os 300 moradores possuem – são apenas quatro os sobrenomes. Dali sai a trilha de 13 quilômetros (5 horas) rumo ao Pico do Itambé, a 2.002 metros de altitude, e à Cachoeira do Tempo Perdido.

São Gonçalo do Rio das Pedras

À margem do caminho entre Diamantina e Serro, uma surpresa: São Gonçalo do Rio das Pedras, delicado arraial que surgiu em 1730 no alto da Serra do Espinhaço, a 1.150 metros de altitude. O aconchego da vila – no comecinho do Vale do Jequitinhonha – é notado à primeira vista, em suas ruelas estreitas e casario com trabalhados muros de pedras erguidos por escravos. Na pracinha, procure o Bar do Ademil, ponto de carimbo do passaporte e tesouro para apreciadores de cachaça. Delicadeza local, os tapetes e toalhas artesanais da Associação Cultural Sempre Viva encantam. As cachoeiras subterrâneas da Rapadura proporcionam um banho inusitado, contemplando a queda sob a terra (38- 8802-9300). Bom repouso tive na Pousada do Pequi (pousadadopequi.com; desde R$ 140). Para uma boa panorâmica, suba até a igreja matriz.

Diamantina

Extremo norte da Estrada Real, ponto de chegada ou de partida, Diamantina nasceu do garimpo de ouro com o nome de Arraial do Tijuco. No entanto, a descoberta de que aquelas pedrinhas brilhantes que se esparramavam pelos tabuleiros eram diamantes transformou a cidade a partir de 1730. De lá para cá, ganhou fama por outros motivos. Como patrimônio colonial repleto de deslumbrantes igrejas – a de São Francisco de Assis e a do Rosário entre elas. Pelos personagens históricos e emblemáticos que ali viveram, como Juscelino Kubitschek e Chica da Silva – é possível visitar a casa do presidente e a da escrava cuja história inspirou novelas. Por sua música, seja as serestas ou as vesperatas, concertos realizados das janelas das casas preservadas duas vezes por mês, entre março e outubro. Pelas celebrações – da Via Sacra na Sexta-Feira Santa ao carnaval de rua. 

 

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