'Metrópole', Stanley tem 2.500 habitantes

Cidade concentra 85% dos habitantes das Malvinas e não tem um homicídio há mais de 30 anos

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Por Cristiano
Atualização:
Porto de Stanley, a única cidade do arquipélago Foto: Cristiano Dias/Estadão

Excluindo os militares da base de Mount Pleasant, 85% dos habitantes das Malvinas – 2.500 pessoas – vivem em Stanley, um grupelho de casinhas brancas enfileiradas à beira-mar. O caráter da construção reflete a dureza do clima e o isolamento do lugar. Os telhados coloridos parecem encaixados com os dedos, como pecinhas de Lego. Eles dão forma a um estilo sóbrio que se repete exaustivamente em todos os vilarejos do arquipélago, adequadamente chamados de “camps”.

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A baixíssima densidade demográfica amplia a sensação de isolamento, mas aumenta o jeitão de confraria. Se todas as pessoas de Stanley se reunissem em um único lugar ao mesmo tempo, caberiam dentro do Teatro Municipal do Rio e não conseguiriam encher o acanhado estádio do Juventus, em São Paulo. É claro, em um ambiente tão minimalista, todos sabem da vida um do outro. Parece angustiante. E é, em certo sentido. 

Em uma madrugada de sexta-feira, na porta do Deano’s, uma apertada boate da capital, jovens contavam como é namorar dentro de um círculo restrito. Eles até falavam com naturalidade, como se a tarefa fosse fácil, mas as estatísticas não ajudam. Se quase metade da população é casada, de acordo com o último censo, e cerca de 20% têm menos de 15 anos, pelo menos 70% dos habitantes do arquipélago não estão em busca de romance. Isto significa que se Don Juan vivesse em Stanley teria de interagir com um universo de 300 pessoas. 

“É isso ou recorrer a algum estrangeiro”, disse uma jovem, que não quis ser identificada. Mas, entre uma tragada e outra no cigarro, ela não se queixa da falta de gente. “Não suporto viver em um lugar que ninguém me conheça”, disse. “Já vivi fora das Falklands, mas voltei porque senti falta deste ambiente familiar.”

 

Passeios pelas ilhas exigem um carro 4x4 Foto: Cristiano Dias/Estadão

Dupla identidade.

Um lugar em que o ser humano é raro expõe outras situações inusitadas. Mais de um quinto da mão de obra tem dois ou mais empregos. Ou muitas funções, como Riki Evans. Dono do Pebble Island Lodge, uma hospedaria na ilha de Pebble, no extremo norte das Malvinas, ele arruma os quartos, serve as mesas e traz os turistas do aeroporto – na verdade, uma modesta pista de pouso coberta de grama, onde ovelhas e gansos vagabundeiam o dia todo. 

O governo do arquipélago mantém uma empresa aérea que voa para mais de 30 vilarejos. A frota é pequena. São cinco aviões Britten-Norman Islander. O bimotor vermelho é tão barulhento que parece um jipe de asas, mas pousa em qualquer lugar. Antes da chegada das avionetas, Riki acelera seu Mitsubishi 4x4 e mete a mão na buzina para espantar a bicharada da pista. Depois, estaciona o carro e vira controlador de voo. Com um rádio na mão, transmite instruções sobre o vento para o piloto, que está atrasado. “Cadê você? Rajada fraca vinda do quadrante sul.”

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Após um estranhamento inicial, o visitante se acostuma com a dinâmica da dupla identidade. O Bruce Wayne da segunda-feira vira o Batman no fim de semana, o que faz das Malvinas o berço do

déjà vu

. Caso de Gavin Short: durante a semana, ele é um pacato deputado na Assembleia local – único colegiado das ilhas, composto por oito membros eleitos. Aos sábados, faz um bico no aeroporto de Mount Pleasant, carimbando passaportes e ajudando a coordenar o embarque.

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Ocupar esses espaços é a chance de faturar um trocado, mas também quase uma necessidade cívica. Para manter em funcionamento uma burocracia estatal mínima, com serviços e infraestrutura, o governo local precisa empregar 25% da força de trabalho. Com tudo isso, o desemprego é residual: menos de 1%.

Viver em uma comunidade pequena e isolada tem outras vantagens. Chris Butler provavelmente tem um dos empregos mais monótonos: ele é um dos 18 policiais que se alternam em três turnos de plantão na delegacia de Stanley, a única das ilhas. Ele chegou da Grã-Bretanha em 2014, com mulher e filho, para ganhar a metade do salário que tinha em Londres – e não se arrepende. “Aqui, os impostos são menores e gasto menos.” 

Do trabalho, ele tampouco reclama. Nas ilhas, não há tráfico de drogas e assalto é coisa rara. As pessoas deixam as chaves na ignição do carro e a porta de casa aberta. Os policiais andam desarmados e não há um homicídio há mais de 30 anos. Ao lado da delegacia fica a cadeia, ocupada por cinco meliantes, a maioria detida por arruaça, briga ou bebedeira – há só um preso, condenado por assédio sexual.

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Para beber, pubs de tradição britânica ou com a cara dos anos 90 Foto: Cristiano Dias/Estadão

POUCAS (E BOAS) OPÇÕES DE HOTÉIS

Em Stanley, há dois hotéis:

Malvina

 e

Waterfront

 – os mesmos endereços dos dois melhores restaurantes da cidade, ambos na rua principal. Mas há outras opções para comer e beber, como o Bittersweet e o Shorty’s. Para um drinque, pubs de tradição britânica, como o Victory, ou com cara de boate dos anos 90, como o Deano’s. 

Algumas ilhas do arquipélago têm ótimas pousadas (ou “lodges”). Apesar do isolamento, é surpreendente a qualidade da comida e o conforto desse tipo de hospedagem. Pebble, Bleaker, Sea Lion, Saunders, todas são ligadas a Stanley por uma avioneta do governo local, que operam sob demanda. Além de turistas, levam alfaces, pães e qualquer tipo de alimento fresco. É a melhor opção para ver as Falklands de cima. O pouso é uma aventura, em uma pista de grama disputada por cavalos, gansos e ovelhas. 

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Além dos onipresentes pinguins, aves comocormorões, albatrozes e carcarás também sãoavistados Foto: Cristiano Dias/Estadão

OVELHAS, AVES E MINAS TERRESTRES

O mar das Malvinas alterna entre o turquesa e o celeste, como uma fotografia retocada com Photoshop. Fosse 30 graus mais quente, daria inveja ao Caribe. Mas o dono do lugar é o pinguim, profundamente ligado à história local. Até o surgimento do querosene, as noites do século 18 e parte do 19 eram iluminadas com óleo de baleia. Para extraí-lo, era preciso retirar camadas de gordura do animal e aquecê-las em recipientes gigantescos. 

As ilhas eram ponto de encontro de baleeiros, mas sem árvores para queimar, não havia fogo. A solução? Pinguins. Fáceis de capturar, ricos em gordura e altamente inflamáveis, milhões arderam na fogueira da indústria do óleo durante 200 anos. Eram quase 10 milhões. Depois da expulsão dos argentinos, não passavam de 500 mil.

A recuperação passa pelas 25 mil minas terrestres deixadas pela Argentina. Diante da dificuldade em desativá-las, os britânicos cercaram os campos minados. Como o pinguim não tem peso para detonar os explosivos, as praias se tornaram santuários. 

Nos últimos anos, a população de pinguins cresceu e hoje rivaliza com as ovelhas que perambulam pelo arquipélago. Os dois animais têm uma relação harmônica. O peso da ovelha, porém, é capaz de detonar as minas enterradas. Volta e meia, ouve-se um estouro, ao longe, e um pobre animal voa pelos ares.

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