'Flipflutuante': cruzeiro literário transforma as curvas da Amazônia

Manaus é o primeiro capítulo de uma narrativa que transcorre entre paisagens bucólicas, debates acalorados, tempestades e comunidades ribeirinhas

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Por Felipe Mortara
Atualização:
Uma pausa para o banho Foto: Felipe Mortara|Estadão

"A literatura desenvolve a solidão. Assim como estar na floresta, estar com os animais ou numa noite estrelada é desenvolver a solidão. Tu é arremessado para si mesmo" - Fabrício Carpinejar, escritor

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MANAUS - Ideia esperta essa de reunir gente que adora pensar, ler, escrever e cantar, todos em um lugar único, longe do caos das metrópoles. Paraty faz isso há 13 anos com sua Festa Literária Internacional entre as ruas de pedra de seu centro histórico. Já a “Flip flutuante”, batizada de Navegar É Preciso, coloca um respeitável time de escritores e músicos para interagir com 120 leitores durante cinco dias a bordo de um navio pelas águas da Amazônia. Na edição de que participei, em abril, os autores Fabrício Carpinejar, Eliane Brum, Reinaldo Moraes e Joca Reiners Terron, mais a cantora Fabiana Cozza, eram navegantes de primeira viagem. O grupo tinha ainda o muito navegado Amyr Klink.O caro leitor interessado na próxima dessas viagens deve saber que a sexta edição, que será no mesmo Iberostar Grand Amazon, está marcada para 25 a 29 de abril de 2016. O roteiro continua contemplando o Rio Negro e o arquipélago Anavilhanas, mas o elenco a bordo mudará bastante: os escritores Mario Prata, Fernando Morais, Noemi Jaffe, Rodrigo Lacerda e Raphael Montes, e a atriz Clarice Niskier. A música será de Zeca Baleiro. Enquanto em Paraty as linhas são traçadas entre casario histórico e as curvas da rodovia Rio-Santos, retas infinitas e sinuosos igarapés e igapós marcam a narrativa do Rio Negro. Se a Flip é Manoel de Barros, o Navegar É Preciso é Paulo Leminski, visceral e questionador. Com poucos espectadores a bordo, bombordo e estibordo, os encontros literários intimistas só poderiam aprumar para bons papos-cabeça.

Mas o roteiro literário, idealizado pela Livraria da Vila e executado pela Auroraeco Viagens (desde R$ 5.220 por pessoa, em cabine dupla, com tudo incluído, menos o aéreo), não fica só na falação.

Nos desembarques, caminhadas na floresta, banho em praia de rio e observação de animais fazem parte do programa. Jacarés, botos, tucanos, preguiças, macacos deram as caras durante os passeios em voadeiras. Mesmo com tanta gente interessante do cenário cultural a bordo, os protagonistas nos cinco dias de duração do cruzeiro são mesmo o Rio Negro e a Amazônia que o envolve. Preservação é tema onipresente.

“É a segunda vez que venho para cá”, disse o escritor Reinaldo Moraes, autor de Pornopopeia (Objetiva, 2009). “Sempre fico emocionado quando olho no mapa e me vejo no meio desse saladão”, brincou. Estreante na região, o arquiteto Roberto Loeb se encantou com o cenário e a prosa, mas demonstrou preocupação com as ameaças ao meio ambiente. “O impacto da falta de cuidado com o futuro da Amazônia me deixou bastante preocupado, principalmente em Novo Airão, uma cidade com ocupação muito precária.”

Proximidade. O convívio intenso, confinado pelas águas, é um lapidador caprichoso da intimidade. “Uma sensação inédita e estranha, um escritor num cruzeiro, preso na mesma gaiola que seus leitores”, disse Joca Reiners Terron, autor de A Tristeza Extraordinária do Leopardo das Neves (Companhia das Letras, 2013). “No final, se mostrou uma grande solução.”

Já na primeira das mesas redondas, de um total de seis, ficou claro no que os encontros se transformariam no decorrer do cruzeiro: sessões de terapia coletiva flutuante, com perguntas e debates. A prosa de uma hora entre o escritor Fabrício Carpinejar e a jornalista Eliane Brum fez o público navegar pelas várias Amazônias da percepção dela, formada a partir de muitas noites dormidas em aldeias e comunidades ribeirinhas em sua trajetória como repórter. Já a conversa com Amyr Klink foi bastante emocional, recheada de memórias da convivência com o pai. “Minha mãe escrevia muito, meu pai era bastante patriarcal, violento”, recordou. “Sempre tive muito acesso aos livros, descobri o mundo dos barcos tarde, mas foi por causa dos livros”, disse.

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Tudo bem dar uma escapadinha do debate para registrar um arco-íris lá no deque. De brinde, três botos-cor-de-rosa circundando o navio. As saídas para explorar os arredores do Rio Negro funcionam, simultaneamente, como escape e combustível para os debates. “Distantes do celular, as pessoas se desarmam da tecnologia e o que sobra é tempo, a possibilidade de conversar”, acredita Samuel Seibel, diretor da Livraria da Vila. “E isso faz com que se sintam em casa e façam revelações do fundo do coração.”*O repórter viajou a convite da Livraria da Vila e da Auroraeco.