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O homem mais viajado do mundo

O Natal dos caranguejos

Na Christhmas Island, na Austrália, os animais migram nesta época do ano- e invadem as ruas

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Por Mr. Miles
Atualização:
Migração dos caranguejos vermelhos na Christmas Island, Austrália Foto: Divulgação

Por pura e confessa excentricidade, nosso insuperável viajante esteve, nos últimos dias, na remota Christmas Island, uma possessão australiana que fica algumas centenas de quilômetros ao sul da ilha de Java, na Indonésia. Tórrida, úmida e bem em cima da linha do Equador, a ilhota é propícia para o avistamento de tubarões-baleia e concentra grande variedade de aves, que Mr. Miles deve estar observando com seus inseparáveis binóculos. 

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Outra gloriosa esquisitice da ilha – muito apreciável por programas documentais de televisão – é o fato de que o pequeno lugar tem uma monumental população de caranguejos, todos eles vermelhos. São 120 milhões de crustáceos (“não me perguntem quem contou”, explica Miles) que teimam em atravessar a ilha andando uma vez por ano, para terror de seus dois mil habitantes e curiosidade dos viajantes. “Uma ilha que tem desfile desses não precisa de exército, don’t you agree? E me contaram que, espantosamente, os caranguejos de Natal não são muito apetitosos, por isso seguem crescendo demograficamente – prevê-se que um dia invadam outras ilhas nas proximidades.” 

Não foi a paixão pelo birdwatching, contudo, que levou nosso correspondente tão longe. “Estou aqui apenas porque resolvi viver uma experiência nova: passar o Natal em Christmas. Do you mind?”

Das lonjuras do Índico, nosso viajante atualizou a correspondência.

Caro mr. Miles. Na realidade, você não existe. Impossível mandar artigos todas as semanas dos lugares onde você alega estar. Ainda assim, quem bolou o personagem merece elogios, pois escreve muito bem, apresenta pontos de vista inusitados e, às vezes, muito engraçados. Happy New Year! Hans Trella, por e-mail “Hans, my friend, não há nada mais disgusting do que passar os dias duvidando da própria existência. Lendo cartas como a sua, chego a supor que sou uma abstração, um fantasma de chapéu coco. And you know what? A ideia chega a soar lisonjeira, na medida que me coloca em uma dimensão diferente a dos seres comuns. Dura pouco essa ilusão, contudo. Quando as dores no joelho recomeçam ou quando me sinto em apuros fisiológicos sem qualquer conforto sanitário nas proximidades – believe me, my friend –, eu adoraria ser um personagem.

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Anyway, Hans, seus elogios aos meus parcos relatos neste idioma tão belo que não é o meu são recompensadores. Espero que eles não sejam apenas kind and polite. A julgar pela primeira parte de sua pergunta, não sou sequer suficiente verossímel para parecer que existo.” 

Mr. Miles: o Natal sempre me evocou uma crônica sua sobre a necessidade que os povos tiveram em levar aos outros as suas verdades e crenças, sem, no entanto, aceitarem as ideias e costumes alheios. O que o senhor acha? Roberto Pedreira de Freitas Ceribelli, por e-mail“Unfortunately, dear Robert: missionários, cruzados, invasores, evangelizadores e divulgadores de todas as fés e ideologias vagam pelo mundo para mudá-lo. Eu os vejo, sempre, my friend. Eles não veem nada. Não escutam som algum. Não aspiram o aroma dos mercados e dos campos. Não procuram a alegria nas pessoas. Pessoas que transitam dessa forma não são viajantes, I’m afraid to say. Eles transportam um mundo irremediavelmente pronto no interior de seus corações e querem mudar os lugares e as pessoas porque – poor people! – têm a ilusão de que sabem tudo (e melhor). 

Viajar, my fellow, é justamente o contrário. Mente desarmada, disco rígido limpo, olhos ávidos, desejo de aprender (ainda que seja para ter substância ao discordar). É de uma ultrajante pretensão passar pelos lugares para deixar marcas. São os lugares, my friends, que marcam as pessoas. Plantam flores no jardim da memória; erguem mirantes para pontos de vista mais amplos e abrangentes. E, last but not least, costumam ser extremamente divertidos.

Happy New Year for you – and for all.” 

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