Para o convés do Endurance

54°48'S 68°18'O - “A cada ano tenho reparado que o clima está mais severo. Esta viagem foi difícil do começo ao fim, uma brutal coincidência, parecia que as tempestades se locomoviam junto a nós.” – Marcos A. Hurodovich, capitão.

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Por Roman
Atualização:
Equipe da viagem faz a parada para a foto Foto: Roman Nemec

 

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Terminando as últimas páginas da atemporal história do barco Endurance no livro de Caroline Alexander, volto de novo para minha realidade cotidiana. Contudo, passaram-se alguns dias e noites em que me desconectei do mundo. De repente, nas páginas do Facebook, fui atraído pelo discreto anúncio de um skipper brasileiro que procurava tripulação para uma travessia do Ushuaia até o Brasil. Percorri-o rápido com os olhos até uma seção de texto, onde foi mencionado o barco Endurance. Senti o suor gelado nas costas e meu coração parou. Sem saber o que me esperava, escrevi um e-mail para Marcos A. Hurodovich no mesmo dia, e minha viagem foi selada. 

É segunda-feira, dia 28 de março, e na Terra de Fogo, no sul da Argentina, o verão lentamente se despede e chega uma longa estação de escuridão e frio. O voo da companhia Aeorolineas Argentinas de Buenos Aires, depois 3,5 horas, desce até o canal Beagle e os raios do sol poente refletem no mar e mancham de ouro as paredes rochosas da serra circundante. Depois de um pouso dramático por causa de rajadas fortes de vento num aeroporto pequeno no Ushuaia, vou para o albergue Antarctida. Uma recepcionista sorridente me oferece um copo de cerveja local, Beagle Stout, para me acolher. Passeando pelas ruas, vejo nas barricadas fogueiras acesas pelos operários-grevistas pedindo melhores condições trabalhistas e, aqui e ali, aparecem placas com o slogan “As Ilhas Malvinas pertencem a nós! Fora com os piratas!” As memórias amargas de uma geração que nunca vai desvanecer. 

Depois de alguns dias passados na natureza áspera da Terra do Fogo, chega a hora de me apresentar ao capitão e tomar meu lugar a bordo do veleiro Endurance. Como lugar de encontro, foi definido um restaurante charmosinho nas proximidades da marina. Chego por último e atrás de uma grande mesa vejo nove rostos de aventureiros animados, porém ainda desconhecidos para mim. Realmente não foi difícil distingui-los dos locais e viajantes, porque são todos brasileiros e gostam de conversar em voz alta. De repente, pula da cadeira um homem bem constituído e barbudo, aperta-me a mão de modo amigável e se apresenta como capitão Marcos Aurelius Hurodovich Lemos, 48 anos. Todos os olhos me acompanham fixamente de modo a me imaginar no meu novo papel – chef e marinheiro.

Marcão, como gosta de ser chamado, me apresenta aos outros dois marinheiros: Lauro, contramestre e advogado de São Paulo, e Tiago, marinheiro e arquiteto do Guarujá. Nós quatro vamos cuidar do barco e do conforto e da segurança dos seis tripulantes durante a travessia, a qual, com base em cálculos e suposições do capitão, deve durar duas semanas. Para minha grande surpresa, temos a bordo duas mulheres jovens, Marina e Adriana, que mostram enorme coragem ao velejar em estas altas latitudes, o que é raríssimo. Depois do nosso divertido jantar de apresentação, vamos para o veleiro, que está encostado numa marina pequena, Club Náutica Ushuaia. Eu e Tiago compartilhamos uma cabine pequena ao lado da cozinha. 

Logo depois da aurora, sou o primeiro a subir para o convés. A manhã está bem fria e o barco nem se mexe na vítrea superfície do mar. O canal inteiro está encharcado de raios de sol da alvorada, os quais devagarzinho dissolvem um fino véu de neblina flutuante sobre a cidade. O mar reflete os picos circundantes e esta vista esquenta o coração. Quem já navegou nestes mares sabe que o vento é capaz de agitar as águas de maneira furiosa. Por isso, encostar um barco no píer é uma mostra de manobra sobre-humana.

Os próximos dias serão marcados por preparações do barco e aprovisionamento. Antes de uma travessia dura e demorada, devido à imprevisibilidade e rugosidade do tempo nestas altas latitudes, é necessário pensar em inúmeros detalhes relacionados ao barco e às suas condições técnicas, à segurança, à navegação, às condições meteorológicas, ao estado de saúde da tripulação, ao abastecimento e muitas outras coisas. O planejado é zarpar no dia 1º de abril, e mais de 2.400 milhas náuticas (4.500 quilômetros) à nordeste nos separam do porto de destino, Santos. “Navegar o mar do ponto A até o B não é uma aventura. É sobre planejamento detalhado, aplicação de conhecimentos e experiências e sobre racional avaliação de situações!” – costuma falar Amyr Klink em suas palestras. O mar não perdoa.

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Enquanto os outros membros da tripulação fazem passeios pela cidade e pela natureza, nós quatro trabalhamos no barco. Como não há um posto de gasolina na marina, não resta outra alternativa a não ser trazer barris e derramar mais de 2 mil litros de diesel nos dois tanques do barco. A esta altura, me preocupo com a qualidade do diesel e se os tanques e mangueiras já foram limpos antes.

Como chef a bordo, meu papel era preparar um cardápio bacana para as duas semanas e uma lista de comidas e bebidas para cinco refeições diárias. Decidi incorporar na dieta várias especialidades eslovacas, como o goulash e o cordeiro assado ao vinho, bem como brasileiras, como o caldinho de feijão. “Você realmente vai precisar de todas essas coisas, contudo, vai gastar o orçamento inteiro só com comida e bebida!”, reclama, ainda sorridente, o capitão. Como resposta, digo cordialmente que boa comida fortalece a moral no barco. Há dois dias estamos fazendo tudo juntos, o trabalho vai de vento em popa e estamos finalizando os preparativos relacionados à partida. Será que estamos prontos para zarpar? 

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