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Rota do deserto: entre igrejas e povoados fantasmas

Encontrar moradores em alguns dos vilarejos do trecho entre Codpa e Parinacota é coisa rara

Por Thiago Lasco
Atualização:
Iglesia Candelaria, em Belén: um entre os muitos templos erguidos pelos jesuítas - todos fechados para visitação Foto: Thiago Lasco/Estadão

Depois de horas de curvas e solavancos em vias empoeiradas, o café da manhã já era uma lembrança distante e o estômago roncava. Chegamos a um povoado, o quarto do dia, que pelas ruas asfaltadas parecia mais bem cuidado que os demais. Dirigimos até a praça, onde estava fincada a igreja. Que estava trancada. Não havia viv'alma em parte alguma: nem no posto de saúde (também fechado), nem nos banheiros públicos (esses abertos, ainda bem). Nos três dias da expedição que fizemos pela Ruta del Desierto, essa era a rotina normal: não encontrar ninguém.

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Nesse dia, nosso guia abriu a caçamba da picape, tirou dela uma grande tábua e cavaletes, montou a mesa com toalha. De uma grande bolsa foi sacando os ingredientes para rechear as tortillas que seriam o nosso almoço: latas de atum, milho e feijão-preto, um pote com folhas de alface, alguns tomates e abacates, um saco de batata palha, azeite. Entre armar nosso farnel, comer e desmontar tudo, passamos umas boas duas horas em Belén.

Ninguém apareceu. Em nenhum momento. Parecia que estávamos na cidade cenográfica de algum filme – em cuja história havia um toque de recolher como o de Bacurau, ou uma tragédia que fez toda a população se mandar dali.

Guañacagua, um dos muitos povoados ao longo da Ruta del Desierto chilena que receberam missões jesuítas Foto: Thiago Lasco/Estadão

Heranças das missões

Nosso percurso pela Ruta del Desierto foi cruzando vários povoados que um dia receberam missões jesuítas: Codpa, Guañacagua, Timar, Ticnamar, Belén, Parinacota. Cada um não tem mais que 100 habitantes. A falta de perspectivas acaba expulsando os jovens para cidades maiores, como Arica, e o que fica são vilarejos que parecem entregues à própria sorte.

Um encontro improvável no meio do deserto: umasimpática família para quem demos carona. Ela havia crescido na região de Arica e constatou que, décadas depois, pouca coisa ali havia mudado Foto: Thiago Lasco/Estadão

Perdido nesse fim de mundo, um simpático casal andava com as duas filhas pequenas a tiracolo pela estrada de terra que liga Codpa a Guañacagua. Oferecemos carona à família e, nos poucos minutos que durou esse encontro tão improvável (como também seria improvável que surgisse mais alguém para ajudá-los), descobrimos que eles moravam em Valparaíso. A moça tinha resolvido voltar com o marido e as duas filhas à região de Arica, onde ela cresceu. “Nada aqui mudou”, ela constatou.

A igreja de San Francisco de Tours, em Codpa, é a segunda mais antiga do Chile Foto: Thiago Lasco/Estadão

As igrejas construídas pelos espanhóis ainda estão lá. Mas todas as que vimos estavam fechadas, talvez à espera de um futuro restauro. A primeira de nosso caminho, em Codpa, é a segunda mais antiga de todo o Chile. Construída no século 17, a Igreja de San Francisco de Tours teve as portas feitas com madeira de cactos nativos e as vigas, com álamos trazidos pelos espanhóis. O campanário (a torre do sino) é outro traço da influência ibérica. Os outros templos pelos quais passamos tinham as mesmas características.

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Produzido em Codpa, o vinho da cepa pintatani é bem forte, doce e licoroso; ele lembra o vinho do Porto Foto: Thiago Lasco/Estadão

Parada estratégica

Foi em Codpa, 2.200 metros acima do nível do mar, que passamos a primeira noite, para ajudar o corpo a se acostumar com a diferença de altitude. Provamos o vinho pintatani, uma cepa produzida ali há mais de 200 anos. Com forte teor alcoólico, doce e licoroso, ele lembra o vinho do Porto. Da bodega que visitamos, Quinta Santa Elena, saem apenas 400 garrafas por ano. Na visita, que custa 1.000 pesos ou R$ 6 (agendamento pelo +569 4420-3155 ou anasoza.uta@gmail.com), são mostrados os parreirais e o processo de produção, com degustação de uma tacinha ao final. Cada garrafa de 750 ml sai por 10 mil pesos (R$ 59).

Mudanças de cenário

Se não há tanta vida nos povoados, a graça da viagem é acompanhar as mudanças de paisagem que vão se sucedendo na medida em que atravessamos diferentes tipos de deserto, até a estepe do altiplano. Com a altitude, muda a fauna, muda a flora, mudam as cores.

Apachetas à beira da estrada: uma das surpresas que reserva a Ruta del Desierto Foto: Thiago Lasco/Estadão

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Pouco depois de sair da Carretera 5 pelo trevo que dá acesso à região de Codpa, a primeira surpresa foi um mar de apachetas ao redor da rodovia. São pilhas de pedras que incas e outras civilizações andinas faziam - hoje, viajantes, guias e moradores mantêm a tradição viva. Existem duas explicações para elas: a mais mítica diz que seriam oferendas para pedir proteção à Pachamama (a Mãe-Terra). De acordo com a outra, essas pilhas eram usadas como pontos de referência pelos viajantes, para marcar o caminho de volta.

Quando a rota começa a subir, a estrada sinuosa vai contornando vales e penhascos, com duas cordilheiras (primeiro a da Costa e depois a dos Andes) se erguendo no horizonte. No início as montanhas ainda são nuas e áridas como em Arica e a única vegetação são enormes cactos em forma de candelabro.

Conforme a Ruta del Desierto ganha altitude, a aridez do deserto costeiro dá lugar àvegetação da pré-cordilheira, que é irrigada pela água das geleiras Foto: Thiago Lasco/Estadão

Montanha acima

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Aos poucos, as colinas começam a ser recobertas por tons de bege e verde da vegetação pré-cordilheira, irrigada pela água das geleiras. Nas encostas, frutas e hortaliças são plantadas em camadas que lembram terraços, nas chamadas zonas de cultivo, outra herança inca. Surgem bodes, ovelhas, cabras.

A partir de 3 mil metros de altitude, começam a dar o ar da graça os tais camelídeos. Ver um guanaco exige sorte e atenção: eles ficam ao redor da estrada, mas se camuflam facilmente pela cor da pelagem, opaca, entre os tons café-avermelhado e oliva, que o ajuda a se esconder dos predadores. A única árvore que sobrevive no altiplano é a queñoa, um arbusto de galhos retorcidos que lembra um grande bonsai.

O caminho até Putre não chega a 300 quilômetros, mas é cansativo. A mudança de altitude acentua o desgaste físico. A experiência toda ganhou muito mais corpo e significado graças ao guia e seus conhecimentos de geologia, botânica, biologia, geografia.

Com Juan Pablo, aprendemos sobre tudo: hábitos dos animais selvagens, plantas medicinais, crenças andinas. Mais que simples curiosidades, as explicações nos ajudaram a entender a riqueza do que nos cercava. 

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