Tesouros de uma inspiradora cidade no Myanmar

Imortalizada em um poema de Kipling, a pouco visitada Mawlamyne guarda de templos budistas milenares a igrejas da época da dominação britânica, no século 19

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Por DENIS D. GRAY/AP
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Pagoda de Kyaik Than Lan oferece uma vista 360 graus da cidade Foto: Denis D. Gray/AP

Na escadaria que leva ao maior templo budista de Mawlamyne (antes chamada de Moulmein), em Myanmar, o escritor britânico Rudyard Kipling (1865-1936) se sentiu inspirado para produzir um dos poemas mais antológicos da língua inglesa. “Na pagoda da antiga Moulmein, mirando preguiçosamente o mar/Há uma garota birmanesa no cenário, e eu sei que ela pensa em mim”, diz os primeiros versos de Mandalay, imbuídos de nostalgia por palmeiras ao vento e sinos reluzentes de templos que o jovem poeta trocou pelos céus acinzentados da Inglaterra. Cento e vinte oito anos depois da paixonite de Kipling, a pagoda Kyaik Than Lan continua sendo a principal atração local para peregrinos e turistas. 

Sua cúpula dourada resplandece sobre uma cadeia de montanhas, com uma vista panorâmica de uma cidade de plantações verdes e irrigadas, que guarda heranças de seu passado como colônia britânica. A mulher que chamou a atenção do poeta está ali, às vezes usando os sarongues há muito descartados por boa parte dos países asiáticos, às vezes compenetrada em seu smartphone, vestida em trajes budistas-fashion. 

Vendedora no mercado central da cidade com vegetais produzidos na região Foto: Denis D. Gray/AP

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Apesar das intromissões da tecnologia e de ser a quarta maior cidade de Myanmar, Mawlamyine mantém um ar de distância das modernidades do mundo, em parte por causa de sua geografia. Trata-se de uma longa jornada – 300 quilômetros de estrada – a partir do aeroporto internacional de Yangon. Outras opções seriam um trem raquítico ou voos esporádicos. 

Por décadas, estrangeiros foram banidos da área. Turistas ainda são poucos em comparação a outras áreas de Myanmar (antiga Birmânia), especialmente depois do fim do domínio militar em 2011 e da vitória eleitoral da líder pró-democracia Aung San Suu Kyi, no ano passado. 

Caminho. Nosso grupo percorreu a rota mais cênica para Mawlamyine: de carro a partir de Yangon até Hpa-An, a agradável capital do Estado de Karen e, dali, em barco alugado pelo Rio Salween, um dos mais longos do mundo. Antes de desaguar no mar, o Salween alcança uma área charmosa de Mawlamyine próxima à Strand Road, aonde famílias se encontram para assistir ao pôr do sol. 

Pôr do sol sobre o Rio Salween - local já foi um importante porto de trocas de produtos vindos da Tailândia Foto: Denis D. Gray/Estadão

Nem sempre foi assim. Depois da primeira guerra anglo-birmanesa, os britânicos fizeram dela sua capital entre 1826 e 1852, construindo escritórios, igrejas e uma grande prisão. Empresas foram fundadas e foi criado o primeiro jornal do país. 

Muitas dessas relíquias se mantêm de pé juntamente com mesquitas, templos hindus, e até uma das mais antigas missões norte-americanas em terras estrangeiras. O lendário Adoniram Judson construiu a primeira igreja batista da cidade em 1827, além de escrever um dicionário inglês-birmanês e traduzir a Bíblia para o idioma local durante os quase 40 anos que viveu no país. 

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Primeira igreja batista da cidade, construída por missionários norte-americanos em 1827 Foto: Denis D. Gray/AP

Ali perto está a igreja anglicana de St. Mathew, erguida em 1887 e ainda ativa, embora muitos dos patrimônios da cidade demonstrem uma certa decadência: vegetação brotando das paredes descascadas e a torre da igreja sempre marcando 6h54.

Apesar dos escritos de Kipling e de o templo guardar um chumaço de cabelo de Buda, o monastério Yadarbon Myint é uma preciosidade raramente visitada. Seu pequeno palácio guarda algumas das mais delicadas esculturas, trazidas pela rainha Sein Don, uma das 45 consortes de Mindon, o penúltimo rei de Myanmar. A rainha chegou à região depois que a então capital do país, Mandalay, foi tomada pelos britânicos em 1885, trazendo com ela a arte da realeza. Seu valor é ainda maior porque o palácio de Mandalay e seus tesouros foram destruídos na Segunda Guerra Mundial. 

Enquanto os templos budistas certamente continuarão preservados, a herança colonial da cidade está em perigo. Dr. Tin Soe, um antigo morador, diz o patrimônio não é valorizado nem pelo governo, nem pela população. “O governo não tem tempo, verba ou cérebro”, diz. Mas um lampejo de esperança vem de Yangon, onde o departamento de preservação do patrimônio vem divulgando uma campanha para salvar a arquitetura colonial da cidade da decadência.

Monjas noviças no mercado central de Mawlamyine Foto: Denis D. Gray/AP
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