Nos passos de Dom Quixote, uma trilha literária pela Espanha

Moinhos, ‘siesta’, pueblos tranquilos e construções medievais instigam a imaginação e colocam o turista lado a lado com Dom Quixote, Sancho Pancha e o fiel cavalo Rocinante

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Por Thiago Momm
Atualização:
Moinhos. Em Consuegra, são posteriores ao livro, mas tão fotogênicos quanto os de Campo de Criptana Foto: Thiago Momm/Estadão

MADRI - É preciso uma imaginação quase tão inflada quanto a do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha para entender como ele surgiu.

É intrigante pensar como Miguel de Cervantes – que vem tendo seus 400 anos de morte festejados em eventos pelo mundo e guia a viagem pela Espanha deste caderno – foi mentalizando o livro que se tornou best-seller instantâneo quando teve a primeira parte publicada, em 1605, ganhou uma continuação dez anos depois e é considerado hoje o fundador dos romances modernos ocidentais.

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Aos 40 anos, Cervantes (1547-1616) era autodidata, enquanto seus rivais tinham estudos formais. Era um ex-soldado ferido e reconhecido em batalha, mas não depois, na sua busca por um bom posto no império espanhol. Ficara preso cinco anos em Argel, com quatro tentativas de fuga frustradas e volta para casa somente sob pagamento do resgate. Um dos avôs era juiz, mas o pai, só mais um entre 3 mil cirurgiões de Castela, uma profissão sem grande retorno, que também implicava ser barbeiro.

Em 1584, Miguel teve uma filha, Isabel de Saavedra, de um relacionamento casual em Madri, e casou-se com Catalina de Salazar no povoado de Esquivias, em La Mancha. Ele era então um poeta menor, um dramaturgo subestimado e, apesar dos elogios recebidos pela novela

La Galatea

(1585), logo começaria quase 15 anos de errância pela Andaluzia. 

Como agente do tesouro real, percorre aldeias atrás de devedores relutantes. É acusado de venda ilegal de trigo e preso em Córdoba. É acusado de não prestar contas e preso em Sevilha, com outros 2 mil encarcerados na maior prisão de toda a península. Em Dom Quixote, Cervantes cita a si mesmo. Com La Galatea em mãos, o padre ironiza: “Há muitos anos que esse Cervantes é grande amigo meu, e sei que é mais versado em infortúnios que em versos”.

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É claro que uma vida tão episódica era justamente o que singularizaria o seu material literário. Tanto Quixote quanto outras de suas obras refletem lugares, experiências e convívios acumulados. Cervantes também perambulou anos por La Mancha, e foi principalmente ali que botou para se aventurar o fidalgo que projeta na realidade seus livros de cavalaria, acompanhado do seu escudeiro Sancho Panza. Quixote, porém, transcende o que a biografia de Cervantes nos diz.

LEIA MAIS: Conheça as musas de Miguel de Cervantes

No encalço.

Ao longo de 20 dias, seguimos os passos de Sancho e Quixote, mas também os de Miguel de Cervantes, num roteiro que você pode percorrer em qualquer época. O autor é um ótimo guia, tanto pelos lugares onde viveu e passou como pelo aproveitamento literário que fez deles. Fora da Espanha, Cervantes esteve ainda em Portugal, Argélia, Itália e Grécia.

Já os livros, além do valor narrativo em si (quase todos são inovadores nos seus gêneros), retratam muito da sociedade de então e se ambientam, com detalhes, em diversas cidades.

Dom Quixote

leva aos pueblos seculares de La Mancha, e as

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Novelas Exemplares

, às cidades mais importantes da Espanha de então.

Viaje del Parnaso

e

Os Trabalhos de Pérsiles e Sigismund

a, o primeiro uma autobiografia mais subjetiva e o segundo de aventura, exploram vivências do escritor em outros países.

 

Estátua de Dulcineia e Dom Quixote em El Toboso Foto: Thiago Momm/Estadão

LA MANCHA, AINDA UM MISTÉRIO

Quando Cervantes começou

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Dom Quixote

com “Em uma aldeia de La Mancha, de cujo nome não quero me lembrar...”, deixou um enigma sem solução 400 anos depois que ele pôs o pé no estribo, como escreveu em um verso, e se foi. 

Sem consenso sobre a aldeia do fidalgo que se aventura como Dom Quixote, uma viagem nos seus passos não tem ponto de partida exato. Cervantes gostava desse segredo, chegando a se pavonear de que seria melhor mantê-lo para que as aldeias o disputassem como as “cidades da Grécia disputaram por Homero”.

E elas disputam. Ser “a” aldeia de La Mancha significa orgulho cívico e claro, turistas. Para os literatos, é fonte de contendas febris. Argamasilla de Alba, com base em sonetos e epitáfios do livro dedicados aos “acadêmicos de Argamasilla”, é uma das candidatas. Mota del Cuervo, próxima de El Toboso, anda em discussão. Para defender ou descartar uma aldeia, vale considerar até o ritmo de cavalgada do Rocinante, imaginando de onde teria saído até chegar a tal lugar citado. Seja como for, grandes inspirações manchegas para o livro vêm de Esquivias, onde Cervantes casou e viveu.

LEIA MAIS: 'Por que fui atrás de Cervantes, Quixote e Sancho Pança'

O livro não é tão pródigo em referências. Fala dos moinhos sem localizá-los. Ambienta cenas em Serra Morena, El Toboso, Caverna de Montesinos, Lagoas de Ruidera e, na ida de Sancho e Quixote para o noroeste, Rio Ebro e Barcelona. Da saída, sabemos que foi na região dos campos de Montiel, cujos limites de então não coincidem com os atuais. De resto, há citações avulsas, lugares deduzidos por estarem no caminho, cidades onde se passam histórias narradas pelos personagens.

Isso não diminui o prazer da viagem. Tanto quanto atrações específicas, importa a atmosfera de La Mancha. A região, dizem os críticos, é o contraponto perfeito às idealizações de Quixote. Enquanto ele enxerga moinhos como gigantes e rebanhos de carneiros como exércitos, a seca e prosaica infinitude de La Mancha, com seus pastores de cabras, soldados, prostitutas, lavradores e fugitivos, tenta trazê-lo à realidade.

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Estátua do Quixote diante do Museu do Quixote em cidade real Foto: Thiago Momm/Estadão

‘Dulce’ Ana de Toboso.

Estive em La Mancha no verão, como Quixote, com um Fiat Cinquecento no lugar do Rocinante e a namorada como companhia. Andar por lá é percorrer uma vastidão agrícola pontilhada de povoados mais ou menos atemporais. O ar espesso, a letargia das estradas, as construções remotas, os pueblos vazios sob a siesta, o azul fixo do céu e o calor incoerente do verão ibérico conectam os séculos.

Quando entramos em El Toboso, no mesmo horário em que Sancho e Quixote buscavam por Dulcineia, vimos um grupo caçando pokémons. No livro, era meia-noite quando cavaleiro e escudeiro entraram na vila – “não se ouvia nada além de latidos de cachorros, que ensurdeciam dom Quixote e perturbavam o coração de Sancho”. A El Toboso de hoje tem 1.954 moradores e segue provinciana, facilitando o passeio pelo livro, pokemundo à parte. 

À meia-noite, na praça central, nos deparamos com quatro nativos em cadeiras próprias. Em um dos cantos, um Quixote se ajoelha ante Dulcineia, com as lindas pedras da igreja de Santo Antônio Abade, de 1511, ao fundo. Para os caçadores de possíveis referências reais, uma tal Ana Martínez Zarco de Morales seria a dulce Ana que inspirou Dulcineia.

A viagem teve também as Ruideras (segundo Quixote, mulheres lacrimosas transformadas em lagoas pelo mago Merlin) e as “covardes e vis” criaturas que são os moinhos de vento em Campo de Criptana. Teve ainda o anfitrião do Airbnb que ofereceu um passeio por Cidade Real e nos presenteou com um dos excelentes vinhos locais; e o homem em Toledo que nos contou que a namorada ganhara um concurso de ilustrações dos 400 anos da morte de Cervantes. Para fatos intrigantes assim, inflacionados pela leitura do livro, Quixote teria uma explicação: obra de encantadores.

9 LUGARES DE 'QUIXOTE'

COMÉDIA HUMANA DE FAMA IMEDIATA

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El Ingenioso Hidalgo Dom Quixote de La Mancha

, impresso em Madri em 1605, não deixou Cervantes rico, mas bateu recordes de venda e soprou sobre ele uma fama imediata. Sancho e dom Quixote se tornaram personagens de cortejos e bailes já nos primeiros anos. Surgiu até, em 1614, uma continuação não autorizada de um tal Alonso Fernandez Avellaneda. Ele simplificou os protagonistas, e quando Cervantes publicou a segunda parte de

Quixote

, em 1615, contra-atacou na própria história. Sem dúvida, o lado burlesco das aventuras era o que mais agradava, mas o livro era mais que isso, sendo considerado o primeiro romance moderno.

Foram muitos os méritos de Cervantes. Ele não conta uma história linear, mas o que o seu biógrafo Jean Canavaggio chama de “universo em expansão”, com inúmeros personagens assumindo e modelando a narrativa. Há o bandoleiro, a noiva abandonada, o universitário de Salamanca, mouros clandestinos, fidalgos, enfim, o que Canavaggio chama de “uma comédia humana” e permite a Cervantes explorar temas como amor, adultério, injustiça. 

Nada disso teria eternizado o livro, claro, não fossem Sancho e Quixote, o escudeiro tanto simplório quanto malicioso, cheio de agudezas mundanas e ditados populares, e o erudito cavaleiro andante. A ironia e o espírito do texto ainda funcionam quatro séculos depois. 

 

A versão da Penguin do clássico 'Dom Quixote de La Mancha' Foto: Divulgação

PARA LER OUVIR E ASSISTIR

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Sobre a obra de Cervantes:

1.

Dom Quixote de La Mancha

(Penguin-Companhia, 1.328 págs., R$ 71,90 os dois volumes).

2.

Novelas exemplares

(Cosac& Naify, 544 págs., R$ 39,90 na

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Amazon

).

3.

Os trabalhos de Pérsiles e Sigismunda

(Documenta, 432 págs., R$ 142 sob encomenda na Livraria Cultura; € 28,50 + envio em

bertrand.pt

); em espanhol, Penguin Clásicos, 496 págs., € 11,95 + envio em

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lacentral.com

).

4.

Viaje del Parnaso y otraspoesias

(€ 28,50 + envio em 

lacentral.com

).

5. Do compositor alemão Georg Telemann (1681-1767), ouça a suíte Burlesque de Quixotte.

Sobre o escritor:

1.

Cervantes

, de Jean Canavaggio (Editora 34, 384 págs., R$ 40,37 na Amazon), é uma das biografias mais aclamadas. 

2.

Las mujeres de Cervantes

é um documentário de 2016 da RTVE. Asssista em:

bit.ly/mujeres-cervantes

.

Sobre o período histórico:

1.

La España de Felipe II

: assista ao documentário em

bit.ly/imperioesp

.

*O repórter viajou a convite da TAP.

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