Tudo em seu lugar

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Por Felipe Mortara
Atualização:
Patan harmoniza rico passado medieval com clima zen Foto: Felipe Mortara/Estadão

Era feriado nacional. Por isso, o professor Kedar Puri não foi lecionar História e Geografia às suas alunas do tradicional colégio Saint Mary's, em Katmandu. Se as meninas tiveram uma pausa no ensino, meu aprendizado estava só começando naquela abafada manhã de abril, já que o mestre de traços inocentes, sorriso simpático e inglês duro de entender estava fazendo um bico como guia turístico. E que baita guia.

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Deixar-se levar pela complexidade urbanística, cultural e espiritual da capital nepalesa pelas mãos de um nativo apaixonado por sua terra é uma experiência emblemática - para não dizer memorável. Cerca de um milhão de estrangeiros visitam o Nepal anualmente. Os mais de 28 milhões de nepaleses brincam que há três religiões no país: o budismo, o hinduísmo e o turismo - sua maior fonte de renda. Uma prova dessa sintonia talvez seja o sentido da saudação unificada "namastê", que significa "o deus que habita em mim saúda o deus que habita em você".

Etnicamente, o povo nepalês, explicou Kedar, remonta a três origens: negros, brancos e mongóis - principalmente os povos do Himalaia, como sherpas e tamangs. Em Katmandu, a 1.400 metros acima do nível do mar, a predominância é de traços e tons de pele mais indianos. Assim como na Índia, prevalece o sistema de organização social por castas. No entanto, se as feições e classes podem parecer dissonantes, a coexistência entre todos soa harmônica.

A ideia de dividir e regular tarefas e trabalhos por troncos sociais e familiares é antiga e enraizada. "Foi instituída no século 14 pelo rei Jayasthiti Malla, que também unificou as cidades-Estado do Vale de Katmandu", diz Kedar. "Isso ajudou na formação de especialistas, que passam de pai para filho as técnicas de um determinado trabalho."

Frenética.

A julgar pela velocidade da cidade, seu trânsito (que faz a Marginal Tietê parecer um monastério) e a quantidade de pessoas circulando, não dá para discordar de que em Katmandu se trabalha, e muito. É um caos urbano com uma lógica muito particular, cuja compreensão é diretamente proporcional ao tempo de permanência. Muito mais fácil entender o que Katmandu não é do que tentar explicá-la.

Se não tem a limpeza e a organização de uma grande cidade ocidental, carrega bagagem cultural e histórica de fazer inveja a muitas delas. No quesito vida ao ar livre e ocupação de espaço público, deixa São Paulo no chinelo. O fim da tarde em Durbar Square, conjunto de três praças interligadas - onde outrora os reis eram coroados e legitimados pelo povo -, é um colírio para olhos de qualquer visitante.

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Entre vendedores de vegetais e todo tipo de quinquilharia, as pessoas se espalham pelos degraus de centenários edifícios envolvidas pela fumaça perfumada de barracas de comidinhas de rua. Turistas pagam 750 rupias (cerca de R$ 18) para circular pelo centro por uma semana - policiais sempre conferem o tíquete.

Em um espaço de aproximadamente quatro quadras, Durbar Square concentra cerca de 40 pontos de visitação. Comece por Kasthamandap, prédio de três andares do século 12, erguido, reza a lenda, com a madeira de uma única árvore.

Com nove andares, a Torre de Basantapur, de 1770, tem uma bela vista da cidade, especialmente ao entardecer. Ali do lado, o Hanuman Doka Palace, com dez pátios internos, abriga uma coleção de excêntricos objetos do rei Tribhuvan (1906- 1955), como pássaros empalhados e suas luvas de boxe.

Apesar de grande parte da cidade não ter iluminação noturna, a sensação dominante é de segurança. Não se preocupe em fazer o trajeto entre o centro e o turístico bairro de Thamel, onde se concentra a maior parte dos hotéis, restaurantes e lojas de artigos de trekking. Nesta região, inevitavelmente surgem as comparações com Bangcoc. Explore as estreitas ruas e visite o Garden of Dreams, caprichado parque privado onde você encontrará uma (rara) sombra de árvore relativamente silenciosa para ler um livro ou um descolado quiosque para tomar um café. Sim, tem Wi-Fi também.

Afinal, tudo bem se em um determinado momento a imersão num ambiente complexo e repleto de estímulos tão diferentes como este der uma saturada. Kedar sabe direitinho o motivo. "Acredito que não há colapso na nossa cultura apenas por conta da divisão de castas. Tudo o que você sente ao seu redor foi construído pela divisão ocupacional entre as pessoas." Um jeito bem apaixonado de um local olhar para sua terra querida.

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