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Das sete colinas lisboetas direto para São Paulo

Opinião|Mireille de Ville, a pintora de Beirute

Subimos as escadas e é de braços abertos [e máscara no rosto] que Mireille nos recebe no seu apartamento em Achrafieh, um dos bairros mais antigos de Beirute. Agora que já há novamente vidros nas janelas e que as memórias da explosão já são apenas isso, memórias, apenas algumas telas rasgadas recordam aquele dia em que o Líbano achou que estava voltando a entrar em guerra.

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Atualização:

"Felizmente não estávamos em casa. Tínhamos ido passar uns dias fora. Um vizinho me ligou falando que a casa estava meio destruída e eu voltei voando", recorda a pintora de origem arménia, já nascida no Líbano, e que já ganhou o cognome de Mireille de Ville: adora retratar Beirute, a cidade onde cresceu, em todas as suas vertentes, desde os prédios típicos às movimentações sociais que fazem da capital libanesa um dos lugares mais interessantes para se visitar. A mesa da sala está cheia de interpretações que fez após a 'Thawra', a revolução que em outubro do ano passado conseguiu a destituição do governo então no poder. "A luz, o céu, a luz interior de cada pessoa. Tudo isso me inspira e me faz criar", diz enquanto nos mostra o seu portefólio, que se estende pelas paredes da sala, do corredor, do ateliê que nos dá o privilégio de visitar.

Retratos da Revolução. Direitos Reservados Foto: Estadão

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Mireille Goguikian é uma pintora dotada - e premiada - e é uma simpatia de pessoa. É impossível não entender que é uma apaixonada pelo que faz, mesmo que isso se torne cada vez mais difícil com a grave crise econômica que o Líbano enfrenta. "Uma caixa de lápis pastel, por exemplo, está custando 200 dólares!", exclama. "É uma loucura", lamenta enquanto explica que o preço altamente inflacionado do material está dificultando não apenas o trabalho dos artistas como o ensino dos mais novos, muitos dos quais não têm dinheiro para comprar tudo o que é necessário para as aulas.

"Perdi muitos alunos" e isso vai se refletir até na saúde mental da sociedade. "A melhor terapia para sair desse apocalispe é a arte-terapia", garante Goguikian. "Acredito que os meus alunos estão sofrendo e que a arte os pode ajudar".

Na sala inspiradora de Mireille Foto: Estadão

O Líbano tem estado, mais uma vez, sob uma forte tensão política e econômica: um ano depois de a população ter saído à rua para mostrar seu descontentamento com a classe política, praticamente nada mudou. No entanto, a economia do país está sofrendo bastante, depois de ter sido descoberto que o Banco Central do Líbano tinha feito um esquema Ponzi com as poupanças dos cidadãos. As instituições bancárias estão sem dólares, e as taxas de câmbio variam todos os dias, numa altura em que a inflação ronda os 120%. A lira libanesa está desvalorizando a cada dia que passa, e se estima que mais de 500 mil pessoas já abandonaram o país no último ano. Aquilo que se esperava que fosse uma revolução que mudasse para sempre a vida do Líbano acabou por enfrentar um mundo de desesperança onde políticos do sistema não saem do seu lugar. A explosão de um silo no Porto de Beirute no dia 4 de agosto, em conjunto com as atuais dificuldades provocadas pela pandemia causada pelo SARS-COV-2 retiraram qualquer ânimo aos libaneses, já cansados de tanto lutar.

Por isso, se torna ainda mais relevante notar aquele pequeno sol que está presente em todas as telas de Mireille. "Eu acredito que a luz, o renascimento, são elementos muito importantes e ele está em todos os meus trabalhos", revela a pintora deixando um apelo: "comprem arte libanesa. Visitem nossas páginas na Internet. Precisamos desesperadamente que o nosso trabalho seja reconhecido e comprado para podermos continuar a viver, para podermos continuar a lutar e a acreditar".

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Depois disso, ela levantou, serviu um jantar super simpático e abriu uma garrafa de vinho libanês. Para brindar com a gente ao facto de ainda estar viva, com forças para continuar lutando. E esse é o maior encanto e a maior lição que nos ensina o povo daquele país: a alegria e a esperança que parece que encontram sempre forma de se regenerar.

Opinião por Margarida Vaqueiro Lopes
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