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Blog do Viagem & Aventura

Estranho, mas sou peregrino

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Por Felipe Mortara
Atualização:

Soa estranho escrever isso, mas me sinto peregrino. Após dez dias gastando sola no Caminho de Santiago, corpo e mente se transformam e adquirem estranha aura. Dores passam a ter sentido e aprendemos a interpretá-las. E nossos sorrisos parecem atrair os dos outros mais e mais.

Depois de Estella, onde dormi quebrado e manquei como se estivesse mutilado, até que fiz um bom dia de caminhada a Sansol. Assim como Filipe, que no seu ritmo de fotos e filmagens vai relendo e dando seu olhar

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ao percurso. Me surpreendi na imponente Catedral de Los Arcos - haja ouro, rapaz. Quase todo o dia tive a companhia do professor de highschool canadense Iam McAdams, com bons causos sobre jovens, frio e caiaques. "Roubamos" uvas dos pés, ele achou o máximo. Sansol miudinha, mas com tratamento autêntico e carinhoso da Arantxa, do Albergue Sansol. Tinha até piscininha gelada para os pés peregrinos. Na farmácia comprei e estreei meu primeiro Compeed, adesivo de silicone para tratamento de bolhas. Durou quatro dias até descolar. O Xavier, um francês simpático e rechonchudo lutava com bolhas e o sobrepeso desde que havia saído de casa, há 26 dias.

Dia lindo de sol foi o que mais houve. Não dá pra reclamar de nada (xiii, foi só falar. Dizem que chove amanhã). Passei por Viana, onde termina Navarra e começa a região de La Rioja. Ali abandonei minhas havaianas e comprei um par de papetes da marca Source, que me permitiu ter alternativa à bota. Estou me dando bem com elas, mas doem um pouco os músculos da parte anterior da canelas. Ah, conheci cinco brasileiros, Nana, Rosane, Rafael, Bruna e Seu Osmar, que pretende completar seu aniversário de 70 anos dia 21 de outubro em... Santiago de Compostela!

VÍDEOS - Confira os melhores momentos até agora!

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Chegar em Logroño é refrescante, com lava pés na entrada da cidade. Com direito a sorvete, ficamos no Albergue Santiago Apóstolo, um dos menos apreciados até agora. Um francês ao meu lado roncava como se anunciasse o apocalipse. Eram 18 pessoas no quarto. A noite lá é linda, com pintxos (espetos) e vinho excelente por 1,70 euro na acolhedora e cênica Calle Laurel. Filipe teve problemas com a cicatriz de uma cirurgia há 9 meses no tendão de aquiles, que inchou. Repouso e carona.

No dia seguinte, foi duro achar energia para as 10 horas andando até Nájera. Filipe descansou de novo e foi de carona com o simpático Raul, da empresa de transporte de mochilas Antzin. Apesar de longo, para mim o melhor dia até então. A paisagem vinícola, repleta de bodegas colhendo suas uvas com caçambas forradas de cachos. Quis mergulhar naquelas piscinas ambulantes.

A entrada em Nájera é meio chatinha, mas um poço alivia a sede dos peregrinos. Tivemos tempo de pegar uma maçã no pé. Pouco vi da cidade. Jantamos menu peregrino a 10 euros com os brasileiros. Vieira de entrada e vinho bem bons.

Pela manhã seguinte, Acácio Paz, da Red de Albergues Camino de Santiago, que tem nos ajudado muito com logística e dicas, veio nos buscar de carro. Nosso primeiro dia conjunto de repouso, e ele nos levou a San Vicente de la Sonciera, famosa cidade produtora de vinho em La Rioja. Angel Campero, de 63 anos, trabalhador com ares de bon vivant e dono do Restaurante La Vistilla, nos levou até Contador, uma das mais famosas e modernas bodegas da região. Acompanhamos a produção de vinho, desde a colheita até o envase. Foi mágico, saboroso e revigorante. E um pouco etílico, inegavelmente.

 

MINUTO ESTADÃO - Você sabe o que é o Caminho de Santiago?

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Jantamos com Acácio e peregrinos em seu Refugio Acácio y Orietta, em Viloria de Rioja. Orietta, italiana de olhar doce, preparou um feijão com carnes de chorizo. Escutamos lindas histórias de peregrinos australianos, neozelandeses, alemães e ingleses, além de contarmos as nossas. Me emocionei. Pela primeira vez em dias dormi sem sentir dor alguma, após carona de Acácio até Santo Domingo de la Calzada.

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Saí cedo como nunca, às 6:30, e me perdi, após deixar de ver um dos sinais de concha. Por meia hora cacei sinais até achar outros semelhantes, que não abriram mão do peso da lanterna de cabeça. A lua cheia desencobriu só depois. Segui um coreano miudinho num passo surreal, ao som de AC/DC e Arctic Monkeys.

Granon (Granhon) é fofa, e de seu albergue paroquial encontrei os amigos brasileiros saindo. Lentos, mantivemos bom ritmo até Belorado. Meu Compeed caiu pela noite e, no meio da estrada, sequei o pé e troquei. Vesti papete em vez da bota. Já era tarde, brotou uma dor estranha na sola. Não piorou nem melhorou. O novo adesivo segue firme.

Em Belorado, a apenas 16 km e 6 horas de caminhada de Granon, um supermercado foi garantia de economia: almoço, jantar e café da manhã por 60 euros. Ainda angariamos mais cinco pessoas, incluindo a fisioterapeuta mineira Angela, que passou a andar com o grupo. Filipe picou cebolas e alho, e eu preparei um macarrão ao molho de tomates frescos com salcichón. Diz que o pessoal gostou. Fim de tarde com sol num jardim e trilha sonora ótima por 11 euros, bom albergue o Quatro Cantones. Fiz ainda um omelete pá pum no jantar. Vinho, sempre riojano. Por 4 euros, ótimas opções.

Enfim, chegamos ao dia de hoje. Saímos cedinho de Belorado para uma jornada de 27 km que levou 10h30 até a pequena Agés, de onde escrevo. Todos devagar, muitos com lesões. Cansados, encaramos um... menu do peregrino - afinal, é isso o que viramos.

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Amanhã madrugaremos para andar os 23 km que nos separam de Burgos. Filipe andou bem hoje e amanhã deve seguir junto. Despachar a mochila grande tem sido opção de uns 60% dos peregrinos já nesse trecho. Ansiosos pela última cidade grande por um longo trecho. Grande e histórica, cheia de causos. Assim como nós.

PS: em Logroño, o Filipe assistiu a uma missa do sacerdote Manuel na catedral e ficou amigo dele, com quem tem se comunicado por WhatsApp com regularidade. Em geral é o padre que, preocupado, pede por notícias.

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