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Ele (ainda) é o homem mais viajado do mundo.

O antidelta do Okavango

Well, my friends, a moeda oficial de Botsuana chama-se pula. No idioma setswana (diz-se setchuana) pula também significa chuva e a palavra adquire um terceiro sentido, o de saúde e alegria, quando proferida durante um brinde ao redor de uma mesa ou de uma fogueira ao ar livre.

Por Mr. Miles
Atualização:

Em uma interpretação livre e simples - como a própria língua que se fala nesse remoto país da África meridional - logo se vê que o termo pula está associado a alegria e prosperidade - e que ambos os conceitos derivam de um bem maior, mais raro e mais cobiçado: a chuva.

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Chove pouco em Botsuana. Três quartos de seu território (que é pouco maior do que o da França ou do Texas, nos Estados Unidos) são tecnicamente definidos como deserto. Uma longa, contínua e tórrida faixa de areia e vegetação escassa chamada Kalahari.

E, no entanto, paradoxo dos paradoxos, a área restante é tida como a mais rica, bela e preservada reserva de vida selvagem de toda a África. Um lugar que nosso príncipe Charles, da Inglaterra, definiu como "o paraíso da terra" e -- ainda que se possa discutir o bom gosto do primeiro herdeiro da coroa britânica em outras questões --, não se pode deixar de reconhecer nele um experiente e incansável viajante.

De qualquer maneira, há outro britânico, esse sim insuspeito, que, cento e poucos anos antes, já houvera dito o mesmo. O incansável missionário e explorador escocês, David Livingstone chegou à região em 1849 e, nos primeiros relatos oficiais sobre a sua existência, manifestou espanto diante da abundância de animais e do esplendor da paisagem. O intrépido aventureiro, cuja efígie (sempre acompanhada de um chapéu de lona estruturado em metal) acabou se tornando um símbolo da presença do homem branco na África, tinha bons motivos para seu estupor.

Ele vinha de concluir uma tórrida e insana travessia pelo Deserto do Kalahari e, sem que visse qualquer nuvem de chuva no céu, deparou-se com uma enorme área, alagada até a linha do horizonte, ocupada por tantos elefantes, hipopótamos, antílopes e felinos que, evidentemente, parecia uma miragem.  Impressionado com a existência desse mar interno sob um céu de estiagem, ouviu dos nativos que aquela água não era resultado da chuva (pula!), mas que provinha " de um país repleto de rios, tantos que ninguém sabe dizer quantos são."

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Ainda que Livingstone não tivesse, antes, atravessado um deserto e se pudesse, como hoje se faz, ter alcançado o Delta do Okavango no conforto de um avião monomotor, é de se supor que o entusiasmo que vaza de seu relato teria sido semelhante. Visto de cima, o alagado parece primeiro uma grande pastagem verdejante. Mas de repente, o que deveria ser um campo torna-se estranho emissor de brilhos e reflexos. É quando se percebe que, de certo ponto em diante, não há mais terra sob a aeronave; tudo o que se vê é um raso espelho d'água a refletir os próprios contornos do aparelho rosnando no ar.

Os monomotores voam cerca de 2 mil metros acima do alagado. Alguns astronautas, que viram a mesma paisagem com o distanciamento da estratosfera, descreveram a cena como um grande tentáculo azul escuro esparramando-se sobre o ocre do deserto.

A atmosfera deve filtrar a cor, porque de perto o Delta do Okavango é indiscutivelmente verde. Um verde viçoso, de tons variados, que vai se alternando conforme a profundidade e a ressurgência de ilhas. São cinquenta mil delas na época da cheia (alguém contou), porções de terra que variam de um metro quadrado a mil quilômetros quadrados, espaços mutantes que abrigam uma extensa cadeia de vida, mais de 400 tipos de aves, 164 espécies de mamíferos, 157 diferentes répteis, além de milhares de insetos.

Delta do Okavango. Nome sonoro, retumbante, evocativo. Assim se chama essa improvável parte da África, um dos últimos núcleos de sobrevivência do que foi o continente mais selvagem, mais cheio de feras poderosas e mortíferas que o homem branco descobriu em sua interminável ânsia de conhecer - e dominar - o planeta.

Na verdade, é um delta às avessas, como se verá. Um delta que não deságua. Temos vários no Brasil: o delta do Amazonas que fende o litoral de três estados (Amapá, Pará e Maranhão) na costa nordeste do Brasil, o delta do São Francisco, que tinge de marrom toda a costa do Sergipe, o delta do Parnaíba e outros menores. Por definição, deltas são as áreas onde os rios encontram o mar, porque é para ele que os rios caminham e o caminho natural das águas é sempre esse. Há rios que fluem na direção contrária à do mar, mas, em algum ponto, encontram outros, misturam-se e tomam o sentido previsto, porque é ao mar e não à terra que as águas pertencem.

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Desprezando a lógica, as regras e o destino, o Delta do Okavango estende-se por 18 mil quilometros quadrados no interior do continente africano (uma área quase do tamanho do estado do Sergipe). Não há mar no seu futuro. As águas que vêm, abundantes, das terras altas de Benguela, em Angola, e recebem incontáveis afluentes também em busca do oceano, convergem para o interior de um deserto, quase equidistante entre o Atlântico e o Índico.

Elas são despejadas numa espécie de vasilha, um grande recipiente formado pelas falhas geológicas de Gomare e Kunyere. E, ainda que volumosas, espalham-se por terras tão secas e sedentas que jamais chegarão a nenhum dos oceanos. O delta do Okavango, no deserto de Kalahari, engole rios caudalosos. Rios que alimentam vidas e, depois, simplesmente somem no deserto. É um antidelta. Como um fogo que se exaure a si mesmo; como um vento que deixa de soprar.

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