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Arte em toda parte

Quase a última viagem

Por Heitor e Sílvia Reali
Atualização:
Cordilheira dos Andescrédito: Viramundo e Mundovirado Foto: Estadão

 

"Gata escaldada que tem medo de água fria" que sou, até porque já passei por dois baitas sufocos em aterrissagens, sempre me certifico da proximidade da saída de emergência. Confesso que em toda viagem o desastroso pensamento de que o avião poderá despencar me fulmina. Mas, quando conheci o sobrevivente de um dos mais dramáticos desastres da história da aviação, minha postura mudou radicalmente. Por isso vou contar esse relato incrível dessa nossa conversa com Roberto Canessa. Ele aprendeu que: "em momentos extremos somos capazes de vencer os maiores obstáculos". Esse episódio dos Andes quebra também outros dois ditos populares de que 'Raios não caem duas vezes no mesmo lugar', e 'Os Andes não devolvem o que eles tiram'.

Crédito: Arquivo Foto: Estadão

 

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"Braços, pernas, estou inteiro! E, vivo. Não, isso é pesadelo, vou acordar. Mas, acordei no Inferno". Os gritos e pedidos de socorro chamaram Canessa para a desesperadora realidade. A maioria dos 45 passageiros fazia parte do time amador de rúgbi de Montevidéu, Uruguai. Convidados para jogar no Chile, alguns levaram a mãe, irmão, amigo, namorada. O vôo daquela sexta-feira, 13 de outubro de 1972 seria bem curtinho, mas ao sobrevoar a Cordilheira varrida por ventos fortes, o avião perdeu-se da rota, bateu na rocha, partiu-se, e em alta velocidade foi rasgando a neve até ficar entalado nela.

 

Crédito: Arquivo (Getty Images) Foto: Estadão

Em altitude acima de 3.500 metros, e menos 40o de temperatura, não existe vida nenhuma. Os jogadores nunca tinham sequer visto neve antes. Canessa, 19 anos, estudante de medicina, começa a tratar dos feridos e com a ajuda dos que estavam em melhores condições, levam os mortos para fora da aeronave. Nos destroços, os 28 sobreviventes tinham apenas poucas barras de chocolate e pacotes de bolacha. Dezoito dias depois do acidente, à noite, aconteceu uma avalanche e todo interior foi invadido pela neve. A tempestade durou três longos dias, e 13 deles não resistiram.

crédito: Arquivo Foto: Estadão

Reduzidos aos últimos extremos, em frangalhos, congelados, famintos, pergunto a Canessa qual foi a saída encontrada por eles. O humor! "Para sacar lo terror, fomos além de todas as esperanças. De início recorremos ao gracejo, ao chiste: pedíamos um refrigerante, una hamburguesa al punto! Depois começamos a fazer a lista dos melhores restaurantes de Montevidéu. Nos imaginávamos abrindo o cardápio, folheando as páginas repletas de pratos suculentos, escolhíamos o melhor vinho, sentíamos os sabores. A primeira coisa que vamos fazer ao sair daqui será abrir um restaurante, servir isto e aquilo. Sonhávamos e mantivemos a fé", relembra. Começaram a trocar o horror pela graça, abraçando a vida.

 

Cordilheira dos Andes crédito: Viramundo e Mundovirado Foto: Estadão

A segunda saída foi a própria natureza: " Como eu podia curtir as maravilhas daquela paisagem na situação calamitosa em que me encontrava? O azul puro do céu, uma luz sublime, e lua sobre a Cordilheira vestida de gala, me dava ganas de vivir. E tal beleza me revelou a presença de Deus muito próxima, como nunca sentira antes na vida", confessa.

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A terceira saída encontrada foi muito penosa. Após quase duas semanas ali, ouviram num radinho de pilha que as buscas haviam sido suspensas. Não havia mais o que esperar, precisavam se alimentar de alguma coisa. O pensamento foi se instalando aos poucos, e por fim, tomaram a decisão em conjunto de se alimentarem da carne dos amigos. "Nos irmanamos", emociona-se ainda hoje Canessa. E, me recordei do impacto que essa atitude teve na época. Quem lhes deu apoio incondicional, calando a todos foi o Papa Paulo VI.Fizeram o impensável e deu-se o milagre.

 

Cordilheira dos Andescrédito: Viramundo e MUndovirado Foto: Estadão

Passados dois meses desde o acidente, Canessa e o amigo Nando Parrado decidiram buscar ajuda. Começaram a descida da Cordilheira. Mas, antes foi preciso subir uma montanha íngreme de mais de 1.000 metros. O esforço era brutal. Nunca haviam escalado e não tinham nenhuma roupa adequada. Zero equipamento. Aferravam-se a idéia de que no cume veriam os vales verdes chilenos. Mas o desespero esmagador foi quando ali viram uma seqüência de montanhas glaciais. E, pior, já não poderiam voltar atrás. "Dê um passo, depois outro passo, não olhe para a montanha, olhe para o próximo passo", encorajava Roberto. Ora era Nando quem animava: "vamos continuar até não respirarmos mais". E assim mais uma semana se passou até que cruzaram a linha onde terminava a neve e começava a terra: " foi para mim a linha entre a vida e a morte", recorda Canessa.

 

crédito: Fuerza Aerea do Chile  

 

Ao deixar Sal, minimalista, natural, solar, descomplicada e pura, puxei conversa com o cabo-verdiano ao meu lado: O que vocês plantam nesta ilha? "Nada, os agricultores aqui só cultivam o verão, e o ano todo". 

Heitor, Roberto Canessa e Silvia Reali Foto: Estadão

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