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Duas jornalistas caem no mundo unindo duas paixões: viajar e ajudar o próximo. Aqui, elas relatam as alegrias, os perrengues e os aprendizados dessa experiência.

De repente, marceneira

Por Camila Anauate
Atualização:
Com Poleen e Mushtaq no novo sofá Foto: Estadão

Cheguei acreditando que daria aulas de inglês, mas disposta a tudo. Visitei famílias de refugiados em suas casas, dei uma classe de ioga para crianças e até dancei dabke com as mulheres árabes, só não imaginei virar "marceneira-estofadora-encapadora" de sofás. E amar. O trabalho mais difícil, mais pesado, quase dolorido e infinitamente reconfortante.

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Quando o Ismael e a Fany, do projeto ReCreate, me disseram que estavam precisando muito de ajuda para finalizar os móveis que seriam doados aos refugiados, respondi com a maior boa vontade do mundo que sim. Depois quase me arrependi: com a minha (falta de) habilidade para trabalhos manuais - quem me conhece sabe bem -, poderia, no máximo, dar apoio moral. Ou fazer companhia.

Cheguei ao atelier do ReCreate meio sem jeito, sem confiança, sem saber o que fazer, mas animada. O Ismael cortava madeira e subia a nuvem de pó que fazia meu nariz reclamar. A Fany media o tecido e pensava na geometria para cortá-lo. Eu observava. "Quer que eu segure o tecido para você cortar?", ofereci - até porque cortar madeira estava definitivamente fora do meu alcance. "Corta você", respondeu Fany.

Pânico. Contei que desde o jardim de infância não consigo cortar em linha reta, colar com capricho, pintar dentro do espaço, fazer dobradura, escultura de argila, nada. Virou trauma, estava sofrendo. "Vai, Camila, eu te ajudo, faz assim, ó". Com jeitinho, Fany e eu nos entendemos. Cortamos o tecido e começamos a dura tarefa de encapar o sofá com um grampeador. Segura aqui, dobra ali, corta, grampeia...

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Aquela tarde de sábado só terminou quando o sofá ficou pronto. Não sentia minha coluna, meu cansaço, o calor, o tempo passar. Queria entregar aquele sofá, começar logo outro. Pensei na alegria de quem fosse recebê-los. Estava realizada - e surpresa com minha capacidade.

Implorei para o Ismael me levar na entrega daquele sofá. A família escolhida era a do iraquiano Mushtaq, 39 anos, que havia chegado à Jordânia havia 15 dias, depois de três anos fugindo do Estado Islâmico no Iraque.

E lá estávamos, dois dias depois, com o sofá metade na parte de trás da van, metade para fora, porta-malas aberto e eu e Fany sentadas em uma ponta para fazer peso. Mushtaq esperava na porta da casa onde se instalou com a esposa, Poleen, 27. Ele fez força para abrir a porta enferrujada, guardou as três cadeiras de plástico que ocupavam a sala e abriu espaço para o sofá entrar.

O casal, com uma alegria contida, um sorriso envergonhado, fez meu coração acelerar. Aquela alegria também era minha.

Sentados no novo móvel, contaram que se conheceram no Iraque em meio à fuga. Os dois perderam familiares nessa guerra e agora estavam na Jordânia para entrar com o pedido de visto para a Austrália. Não sabem quanto tempo vão esperar. A espera, pelo menos, pode ser um pouco mais confortável.

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A ideia de doar móveis e fazer o ReCreate é do Ismael e da Fany. Há sete meses na Jordânia, o casal de missionários percebeu a necessidade ao visitar as famílias refugiadas em suas casas, onde, em geral, falta tudo. Antes, no Brasil, eles participavam de vários projetos sociais, mas nunca desenharam e construíram sofás, camas ou poltronas. Com a ajuda de tutoriais na internet, muito amor, cuidado e capricho, eles colocam em prática esse lindo projeto.

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"Ao encontrar aqui muitos móveis abandonados nas ruas, tivemos a ideia de reformá-los para doar aos refugiados", conta Ismael. Ele aproveita o que dá: espuma, fitas, almofadas, pneus. E conta com doações para comprar ferramentas e madeira, que na Jordânia custa caro. Desde que começou o ReCreate, Ismael já fez 15 camas, três sofás e algumas poltronas.

Só deu tempo de eu ajudar com dois sofás - quando o último foi entregue, eu já havia partido. Mas foi tempo suficiente para aprender que com boa vontade a gente pode tudo. E para sentir uma emoção diferente, uma alegria imensa de se entregar para o outro.

Em tempo: quem quiser doar um móvel a refugiados pode entrar em contato com Ismael e Fany pelo e-mail suspiroefanybella@gmail.com. Quando tiver pronto, eles vão entregar e tirar uma foto para você em agradecimento. Confira a página do projeto no Facebook.

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