Para este dia marcado pelos 40 anos do Golpe Militar no Chile, trouxe um depoimento emocionante da psicóloga chilena Claudia Godoy Gonzalez, filha do médico Carlos Godoy, desaparecido político em 1976.
Ele conta como fez para manter a presença do pai forte na vida e o que esperar quando já se passaram quase quatro décadas de procura.
Claudia Godoy participa ativamente de associações de familiares de desaparecidos, trocando experiências e sentimentos com centenas de famílias na mesma situação no Chile, passados quarenta anos.
Quandoseu pai desapareceu e e quem foi teu pai?
Pra mim é um prazer falar do meu pai. Eu conheço meu pai até os 8 anos. Ele se chama Carlos Godoy Lagarrigue e tinha 39 anos quando desapareceu, quando foi detido e depois desaparecido. Ele era médico ginecologista obstetra. Nós éramos uma família muito feliz, muito convencida do projeto da Unidad Popular, meu pai era um médico comunista, um médico com o sentido da medicina pública muito forte. De fato nos vivemos 3 anos numa zona rural, Melipilla, onde o meu pai praticou a medicina pública que era sua grande vocação. Assim como amava a medicina e a saúde publica, amava seu partido, o Partido Comunista. Quando veio o golpe ele ficou desempregado e teve que ter outras fontes de recursos, tivemos muitas dificuldades. No mesmo ano de 73, no ano seguinte 74...
Meu pai desaparece em 4 de agosto de 1976, quando no Chile a ditadura aplicava políticas especificas de extermínio. No ano de 76 o projeto era fazer desaparecer completamente as células do partido comunista. Nesse contexto, já tendo desaparecido muitos companheiros do meu pai, que ele é detido por mãos misteriosas.
Eu tinha naquele momento oito anos, e o meu pai , como era médico, tinha plantões à noite, numa zona rural, numa zona sul de Santiago.
Saiu no seu carro no dia 3 de agosto, que também desapareceu, e levava na sua mala seu pijama, sua escova de dentes....eu tenho tentado proteger estas imagens na minha memória.
Essa noite ele fica no hospital e ele deveria sair tipo 16h. Ele trabalhava também num consultório associado a uma paróquia, num bairro popular. Ele nunca chegou na paróquia e é detido em alguma parte do trajeto. Anos depois ficamos sabendo que os responsáveis eram da Direccion Nacional de Inteligência, a DINA.
Nós somos 3 irmãos. O mais velho, Pedro, tinha 11 anos, eu 8 anos, e o menor de quase 2 anos. Minha mãe nos disse a mim e a Pedro que provavelmente o nosso pai tinha sido detido e que não comentássemos e nem falássemos com ninguém na escola sobre isso.
Bom esta informação quase que não foi necessária, porque a gente já tinha percebido um carro que estava a dias vigiando a nossa casa. E dias depois do desaparecimento do meu pai, muitas ligações misteriosas com uma voz de mulhernos perguntava pelo nosso pai.
Foi-se construindo ao longo do tempo na cabeça destas crianças uma ideia muito estranha e compreensível de que seu pai não voltaria. Era estranho porque havia a esperança que de que ele voltasse e ao mesmo tempo se tinha a convicção de que não.
Mas nós esperávamos.
De que maneira você mantém o seu pai na sua vida?
Pra mim se constitui uma imagem infalível no meu cotidiano. Eu estou com ele todos os dias. Ele me acompanha nos momentos importantes, duros e alegres da minha vida. Ele está comigo e falo muito dele. Tenho procurado conhecer e conversar com pessoas que o conheceram mais do que eu, porque o que tem sido difícil pra mim é que eu o conheci só por 8 anos. Muito pouco.
Acho que foram 10 anos que o esperamos realmente, como que ele fosse voltar com vida. Mas logo depois os acontecimentos do pais foram mostrando que não. Existia ua fantasia muito forte de que ele estava num centro de detenção, que tinha perdido a memória e isso é em comum em todos os filhos. Nós o temos como um amigo permanente.
É certo que é a gente se emociona ao falar deles, mas também dá alegria, porque essas pessoas eram especiais, muito comprometidas com o trabalho social, comunitário de seu país, com um carinho pelo país e pelo seu trabalho e pelo seu povo tão grande, que pra mim é difícil entender.
Eu me coloquei alguns objetivos para estar perto do meu pai. E assim entrei para estudar na mesma escola em que ele estudou, aos 13 anos, e senti um tremendo alivio porque sentia que estava pisando o mesmo chão que ele pisou. Percorri os lugares onde trabalhou, conversei com seus colegas de universidade e de vida e aos poucos fui construindo como um quebra cabeças a imagem de um pai com o qual também discuti, briguei, me zanguei.E quando me transformei em mãe entendi coisas que tinha custado a entender.
Trabalhei alguns anos em Villa Grimaldi, que era o centro de tortura onde passaram boa parte dos detidos em Santiago. Hoje se transformou no Parque da Paz Villa Grimaldi.Mas entre ´73 e ´79 se chamou quartel Terra Nova, por onde passaram mais de 4 mil prisioneiros políticos e pelo menos 236 detidos desaparecidos que estiveram neste lugar. Meu pai esteve ali. Há testemunhas de alguns prisioneiros que fazem referenciaao "Dr. Godoy" . Me aproximei a lugares onde ele poderia ter sido detido, as celas, que eram umas caixas de 1metro por 1 metro, onde ficavamaté 4 presos juntos .
O ano passado conheci o quartel de tortura Simón Bolivar, onde ficando sabendo por meio de testemunhas , que passou na célula do Partido Comunista do Chile, do qual pertencia meu pai. Lá eles receberam torturas particularmente ferozes.
Objetivamente não temos referencia de onde estão seus restos.De acordo com a informação de que as Forças Armadas nos entregaram em algum momento dos anos 90 meu pai teria jogado ao mar em alguma zona de San Antonio, no litoral central do Chile.
Não há documento escrito sobre isso, temos encontrado alguns corpos, muitos poucos.
Tenho compartilhado a dor de amigas muito próximas do que significa encontrar pedaços de ossos do seu pai. Ainda não foi minha vez, e não sei como vou reagir quando seja. Por que na verdade tenho vivido a vida inteira em espera . Muitos anos em espera real e hoje a espera da verdade e da justiça. O processo do meu pai está muito próximo de terminar. Não há culpados, os culpados já não estão, as pessoas que sabem não querem falar .
A verdade que quanto mais passa o tempo e você fica sabendo destes tipos de tortura e de horrores e barbáries, vc se da conta que a espera deve ser permanente , porque mais precisamos de justiça, mais precisamos dignidade.
Ouça o depoimento de Claudia Godoy , aqui
E este é o texto de autoria dela que está no Museo de la Memoria y Derechos Humanos, em Santiago do Chile
EN MEMORIA A TU AUSENCIA
Estoy frente a una hoja en blanco y debo escribir imágenes....esto no es fácil...si bien es cierto que te recuerdo siempre, que te has hecho parte de mi cotidiano, que hablo contigo sin darme cuenta cuando murmullo ideas haciendo cualquier cosa.......es otra tarea muy distinta Recordarte con sistematización...re - cordare.....volver atraer al corazón, a mi corazón, volver a hacer que pases por mi corazón....por mi presente.
Lo difícil y duro es que no solo pasan por mi corazónaquellas imágenes que tanto atesoro de ti, papá.....tus manos, tu cuerpo saltando y riendo....tú con tu manzana a medio terminar de un mordisco....tu carcajada, tu revolverlo todo con esa energía divertida que a los 8 años me era tan impactante y atractiva!!
Recuerdo y revivo el horror por el que pasaste........no me lo pudiste contar, esperé que lo hicieras tantos años.....sabía que siendo la niña pequeña que dejaste de ver, tu no lo harías...tu cuidarías que esa niña no sufriera. Te conocí tan poco, peroestoy cierta de que el sufrimiento en los niños es algo que tu no tolerarías, la injusticia en los más desvalidos, en los enfermos, en los carentes, fueron los motivos de tu lucha y paradójicamente la razón o mas bien el móvil irracional, que dejarían en tu piel el sello de un sufrimiento permanente.
Hace años que esa niña quedo atrás...empero aun no puedo saber qué te pasó, qué te hicieron, dónde estás, dónde está tu cuerpo repartido??
El tiempo nos ha ido entregando testimonios, algunos en la valiente voz de los sobrevivientes, otros, en los hallazgos de huesos, trozos de ropas, pedazos de riel lanzados al mar, restos de químicostóxicos escondidos como evidencia de la vergüenza. Entonces te recuerdo, te revivo en mi y se me retuerce elalma, el intestino y la médula.....
Me debo sobreponer a este desgarro, que no es solo mío...es exponencial, son muchos que lo comparten.Hoy día son muchos más los que se atreven a reconocerlo como cierto, como hecho irrefutable...antaño debimos además soportar la negación de tantos, la ironía, la burla, la humillación de una existencia que querían no tan solo destruir, si nodeshonrar, mancillar, aniquilar en el olvido social.
Para que tu recuerdo se mantenga relativo a la dinámica de mi vida y no tan solo en aquella huella mnémica de mi pasado de niña...te he hecho transitar conmigo mis momentos importantes; has asistido a mi graduación, has estado en el quirófano en mis dos partos, me has acompañado al subirme a un avión...te has reído conmigo, me has protegido en momentos de mucho temory siento que incluso has cobijado a mis hijos y disfrutado con sus logros.
Hago el ejercicio de pensarteaquí y ahora y ya no sé como serias....cómo habrías encajado en esta sociedad chilena que no ves hace tanto tiempo..... te imagino, tal vez canoso y abuelo, pero igualmente divertido y lleno de vitalidad....tal vez habrías jugado a la pichanga playera con tus nietos - sabes que tienes 5 nietos varones y una preciosa niña-, imagino que seria tu regalona....imagino que irías con ellos a caminar por la playa, a escalar rocas, que los habrías llevado a conocer la cordillera en la que esquiaste de adolescente con tu hermano, que comerías pan tostado con mantequilla a la hora de la once, que irías feliz a la feria los sábados porla mañana para que la mamá tecocinara la sierra a la cacerola con cebolla y ajo....imagino que tus manos cirujanas habrían trabajado incansablemente por la Salud Pública de tu querido Chile...imagino que serias el hombre sensible , alegre y comprometido que fuiste desde joven....imagino, imagino......imagino.....y cuánto deseo que esta pesadilla, que esta realidad con bombardeo y política de exterminio institucional,no nos hubiera robado la dignidad, la inocencia, la vida y los sueños.
NI PERDON, NI OLVIDO