EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

A vida secreta dos vizinhos

Por que em um dia de sol ninguém do condomínio desce para brincar no playground com a menina chinesa?

PUBLICIDADE

Foto do author Gilberto Amendola
Por Gilberto Amendola
Atualização:
A palavra 'coronavírus' dói nos ouvidos de Liu Foto: Di Vasca/Estadão

Da janela da área de serviço, ele vê a filha brincando no tanquinho de areia do playground. Perto dela, sentada em um banco amarelo, a mulher folheia uma revista. A cena enche o coração de Liu de amor – e ele quer enquadrá-la na memória para quando a vida não for assim tão generosa.

PUBLICIDADE

Era sábado, 11h da manhã, e fazia um sol gostoso. O prédio onde a família mora tem 14 andares, quatro apartamentos por andar e uma média de três moradores por unidade. O parquinho vive cheio de crianças – principalmente nos sábados de sol. 

Mas, naquele sábado, apenas sua mulher e filha desceram. Nenhuma outra mãe ou criança quis aproveitar o dia. Por quê? Liu ouviu uma criança chorar no apartamento de cima – e imaginou ouvir outra reclamando no andar de baixo. 

Liu sentiu o sangue subir. Respirou fundo e tentou achar outra explicação para aquele sumiço dos vizinhos. Uma explicação diferente daquela que ele havia imaginado – e que o deixou tão fora de si. Será? 

Saiu do apartamento. O corredor está vazio. Silêncio. Liu pensa em forjar uma tosse. Ou um espirro. Ele desconfia que, pelo olho mágico, algum vizinho esteja espionando. Aperta o botão do elevador de novo. Na verdade, esfrega a mão no botão. Com raiva. Faz uma careta para o apartamento 32. Pensa em bater na porta e tentar uma conversa amigável. Quando o elevador chega, Liu desiste do vizinho do 32. Ele entra, aperta o botão do subsolo e se olha no espelho. É um homem comum, um chinês que vive no Brasil há 25 anos. Trabalha cerca de 8 horas por dia, 5 dias por semana. Nunca atrasou o condomínio ou qualquer outro boleto. E, principalmente, jamais deixou de desejar bom dia a quem quer que fosse.

Publicidade

Já na garagem, ele ouve o som da câmera de segurança – que o persegue. Olha para ela com uma expressão confusa. Não, expressão de asco. Sobe correndo a rampa até a guarita do porteiro. E toca o interfone. Espera uns 5 segundos, mas ninguém responde. Toca outra vez.

– Pois não? – atende o porteiro.  – Quero falar com a síndica – diz Liu. – Ela saiu. – Não saiu, não. Quero falar com ela agora! – Um minuto. 

Liu espera. Se ela não descer, pretende esmurrar todos as portas de todos os apartamentos daquele prédio. Liu espera mais um pouco. Tenta recuperar a imagem da mulher e da filha brincando no parquinho. A vizinha está chegando. Ela usa uma máscara cirúrgica no rosto. E caminha lentamente na direção dele.

– Não sei o que a senhora está pensando, mas eu queria deixar claro que... – O mundo está vivendo uma epidemia de... – De preconceito! – Jamais! Tenho muitos amigos chineses e... – A última vez que estive na China foi em 2016. – Senhor, entenda, nós ainda não sabemos como o coronavírus...

A palavra “coronavírus” dói nos ouvidos de Liu. Ele só pensa em pegar sua família e sair daquele prédio. E nunca mais pôr os pés ali. Quando se dá conta, mulher e filha já estão ao seu lado. A criança chora no colo da mãe. Homens vestidos de astronauta saem com sacos cheios da areia que foi retirada do parquinho. Estão higienizando o lugar.

Publicidade

PUBLICIDADE

Liu pega a filha no colo, puxa a mulher pelo braço e corre para a garagem. No caminho, percebe pessoas com máscaras cirúrgicas espiando pelas janelas. Já no carro, avisa: “Vamos ter um sábado maravilhoso. Primeiro, vamos almoçar naquele restaurante de que você gosta. Depois, sorvete, muito sorvete. Daí, vamos todos aproveitar a tarde no Parque do Ibirapuera. No fim do dia, cinema, pipoca e refrigerante para todos”.

A filha sorri. Abraça o pai. A mulher deixa escapar uma lágrima e beija Liu no rosto. O portão se abre. O carro da família sai – deixando para trás uma gente que está doente de verdade. 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.