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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

Aconteceu com você também: ela não veio

Olham com cara de piedade. Ninguém é solidário

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Por Gilberto Amendola
Atualização:
'Você está sozinho. Tem um carrinho nas mãos e um olhar perdido' Foto: Jacob Silberberg/Reuters

Os encontros felizes se multiplicando ao seu redor. E você, mentalmente, repete: “ela vai chegar”.

Já passou quanto tempo? A gente perde a noção dele em situações como essa. Quantas vezes você consultou o horário no visor do celular?

Já estão olhando com aquela cara de condescendência reservada aos mutilados de guerra ou aos desenganados do amor romântico.

Ninguém tem nada com isso. Mas, talvez, você fizesse o mesmo. Acho que sim. A curiosidade pelo desastre alheio é irrefreável.

De longe, parece ela. É ela! Tem que ser ela! Você avança na direção certa, pedindo licença para uma gente que parece querer não sair do lugar. São feitas de pedra ou o quê?

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Ao se aproximar, ao abrir os braços para abraçá-la, percebe, exaurido de esperança, que outro alguém já está com ela. E que os dois partem felizes em direção ao desembarque.

O coração aperta.

Mas a mosca varejeira da desconfiança já fez o seu ninho.

Era tão parecida. Se bem que não tinha aquela fitinha vermelha que você mesmo prendeu para que ela se destacasse das demais, que fosse diferente, única, só sua.

Você finge um ar impassível que, definitivamente, não combina com você.

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Quando foi a última vez que você esteve com ela? Será que ela está mudada? A fitinha vermelha pode ter caído na viagem. Pode sim! E se ela estiver sendo sequestrada por aquele homem?

Você corre em direção ao impostor.

– Senhor?

What?

Sorry...

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É... não era ela. Muito parecida. Mas não era ela. Muita gente já se sentiu assim: todas são ela, mas nenhuma pode ser realmente ela.

Você volta para junto da esteira. Confere no bilhete se aquele é o lugar certo. Acontece de muita gente se confundir. É jet leg que chama.

Mas quase todo mundo foi embora. Restam poucas pessoas. Todas, sem exceção, torcendo para que o infortúnio da vez recaia sobre o outro. Você não é solidário. Ninguém é.

Agora, elas chegam mais separadas, os intervalos entre elas são maiores. Elas são poucas e solitárias. Ao seu lado, um sujeito grita aliviado ao reconhecer a fonte da angústia dele. Sujeito de sorte. Inveja.

Você está sozinho. Tem um carrinho nas mãos e um olhar perdido.

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O silêncio é quebrado pelo barulho da esteira que já não traz mais nenhum alento. Como é triste uma esteira vazia.

Um novo voo já chegou. Outros passageiros vão desembarcar com seus carrinhos e suas expectativas sobre encontros e desencontros.

Você quer chorar.

Um agente do aeroporto se aproxima. Ele não fala a sua língua.

Mas já sabe o que aconteceu.

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Você segue o agente até um balcão. Ele confere sua passagem, seu passaporte e diz lamentar. Ele anota o endereço do seu hotel e faz uma promessa que parece sem sentido. E tão vazia que sequer uma compensação financeira poderá preencher.

Você sai do aeroporto. Pede um táxi. E no banco de trás aperta contra o peito uma mochila – com uma muda de roupa, escova de dentes e um guia de viagem.

A paisagem na janela passa sem você perceber. No rádio do táxi, um cantor latino promete reconquistar um amor extraviado.

A viagem nem começou, mas já acabou. Ela ficou pra trás. Talvez em outro país ou aeroporto. 

Mas como não amá-la? 

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