Fazia mais de hora e meia que caminhávamos pela zona portuária da cidade do Rio de Janeiro quando, depois de atravessar a Avenida Barão de Tefé em meio ao barulho e à poeira dos ônibus, chegamos a um enorme buraco no chão, isolado por cordas. A aproximação mostrou que ali havia ruínas de pedra. Estávamos no Cais do Valongo, principal porto de desembarque de africanos traficados como escravos para o Brasil ao longo de mais de três séculos, e uma das paradas mais emblemáticas do tour Raízes Africanas.
O Sítio Arqueológico Cais do Valongo entrou no domingo (9 de julho) para a lista de Patrimônios da Humanidade da Unesco. O conjunto de ruínas foi redescoberto em 2011, durante escavações feitas no contexto das obras da área chamada de Porto Maravilha. Hoje, o que restou do antigo cais integra o roteiro de visitação da área conhecida como Pequena África, que abrange também o Morro da Conceição, Saúde e Gamboa.
Há algumas semanas, antes da concessão do título pela Unesco, tive a sorte de estar no Rio exatamente em um fim de semana em que havia um tour a pé guiado organizado pelo projeto Revelando o Brasil. O grupo organiza mais de uma dúzia de roteiros a pé, sempre com viés histórico e cultural, sempre sem preço fixo: o valor de R$ 20 é sugerido, mas você paga quando acha que deve no final.
Não é preciso nem fazer inscrição, basta aparecer no ponto de encontro divulgado, em geral, no site e no Facebook. Na ensolarada manhã de sábado, éramos cerca de 30 turistas em frente ao Museu de Arte do Rio, o MAR, que já é uma atração. O museu empresta banheiro e bebedouro para encher garrafinhas – outros itens para o passeio são protetor solar, boné e calçado confortável.
A bem informada guia Karen Eline puxou a caminhada. Havia outro grupo, em inglês, que nos acompanhava de perto. Na Igreja e no Largo de São Francisco da Prainha, aonde o mar chegava antes dos aterramentos que foram feitos posteriormente em direção à Baía de Guanabara, o passeio começou de fato. A caminho da Pedra do Sal passamos por casas geminadas de dois andares que atualmente estão em ruínas e que, contou a guia, abrigavam pessoas negras que fugiam da situação de escravidão. “Um verdadeiro quilombo urbano”, disse Karen Eline.
A guia contou a história da Pedra do Sal, que ganhou o nome porque era ponto de passagem dos escravos que descarregavam o produto em questão. A tradicional roda de samba que ocorre às segundas-feiras na pedra teve sua edição cancelada na semana passada. Segundo os organizadores, ações da prefeitura visaram impedir a realização do evento por meio de uma blitze da Guarda Municipal – o prefeito Marcelo Crivella negou a pretensão de acabar com a roda de samba.
Outra das descobertas do tour veio depois da passagem pelo Cais do Valongo e pelo Jardim Suspenso do Valongo. Já no bairro da Gamboa, na rua Pedro Ernesto, chegamos a um conjunto de três casinhas do século 18. A ligação do lugar com a história da escravidão no Brasil também foi descoberta por acaso.
Ao comprarem as três casas e começarem reformas, Merced e Petruccio Guimarães descobriram enterrados sob as construções milhares de fragmentos de ossos humanos. Os estudos mostraram que o local era usado para enterrar africanos que não resistiam às duríssimas condições em que eram transportados nos navios de tráfico e morriam antes mesmo de serem vendidos. Conhecido como Cemitério dos Pretos Novos e hoje transformado em sítio arqueológico, está entre os pontos mais tristes – e necessários para que não seja esquecido o horror – da história da escravidão de africanos no Brasil.
As próximas edições do tour Raízes Africanas estão marcadas para o próximo sábado, 15 de julho, e 19 de agosto.