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Capítulo 1: O bairro de 'A Amiga Genial'

Rione Luzzatti - ou simplesmente 'o bairro' - ainda preserva os elementos descritos pela autora em seus livros. E ganhou intervenções com os personagens da série da HBO

Por Samia Mazzucco
Atualização:
Prédios simples do bairro, com suas tradicionais varandinhas Foto: Samia Mazzucco

Se nos livros da tetralogia de Elena Ferrante parece haver um ímã que não deixa os personagens irem embora, hoje em dia os turistas podem chegar e sair de onde eles moravam sem a menor dificuldade. Bastam cinco minutos. Este é o tempo que demora o trajeto de trem (que custa € 1,30 na Trenitalia) entre a estação central de Nápoles, na praça Garibaldi, e a estação de Gianturco, onde fica o Rione Luzzatti. Ou, simplesmente, “o bairro”.

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É verão em Nápoles e o ar-condicionado dentro do vagão aplaca os 30 graus do lado de fora. Tal qual descrito nos livros, a paisagem vista pelas janelas desse curto caminho rapidamente se transforma, deixando para trás o movimentado centro da cidade e se aproximando de uma área com antigos galpões de fábricas, muros cinza pichados e prédios de cores pastéis não tão bem conservados. O alto-falante anuncia a fermata (parada) e o bafo quente abraça o corpo ao sair do vagão. Chegamos ao bairro.

Apesar de a estação ter aparecido desde o início da história, nos anos 50, ela não tem nada de antiga e a construção moderna parece ter sido reformada há pouco tempo. Uma grande porta de entrada, envidraçada do chão ao teto, tem estampado um adesivo com a foto das protagonistas da tetralogia, Lila e Lenu, ainda crianças, brincando. Trata-se, na verdade, de uma foto das atrizes (Ludovica Nasti e Elisa Del Genio, respectivamente) que interpretaram as personagens na série da HBO, que adaptou de forma fidelíssima o primeiro livro, A Amiga Genial. A segunda temporada, baseada no segundo livro, História do Novo Sobrenome, estreou em março, e a terceira já está confirmada.

A partir da estação, basta caminhar uns poucos metros para chegar ao marco que limita o bairro. Sim, diante dos olhos está o túnel de três entradas sob o trilho do trem. A pista do meio é a única em que passam carros; as das laterais, com algumas pichações nas paredes, são para pedestres, resumidos a uns poucos idosos carregando sacolas e carrinhos de compras recém-feitas no mercado. E se na história o objetivo de Lenu era cruzá-lo de vez para fugir da vida violenta e miserável do bairro, fazer o caminho inverso para entrar nele emociona pelo simbolismo.

O Estradão

O túnel que Lila e Lenu teriam de atravessar para ir à praia Foto: Samia Mazzucco

Chegando à luz no fim do túnel fica-se frente a frente com o Estradão - na verdade, uma via de mão  dupla chamada Emanuele Gianturco. Nela há não um, mas dois postos de gasolina, um de cada lado da rua. 

O túnel e o Estradão causam impacto à primeira vista por representarem tanto a história. Mas é ao virar na primeira rua à direita do Estradão, a via Beato Leonardo Murialdo, que o bairro se materializa por completo. Nesse momento, a impressão é de ter entrado em uma máquina do tempo literária e desembarcado dentro dos livros, em plena década de 50. Dá quase para acreditar que Lenu e Lila passarão com suas bonecas correndo pela rua, a mesma que cruzavam todos os dias a caminho da escola fundamental.

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Impressiona como a descrição de Ferrante é detalhada e fidedigna. A arquitetura e o ambiente desprovido de cuidados descritos em sua narrativa seguem ali, intactos. Os prédios, construídos para abrigar famílias desabrigadas após a Segunda Guerra Mundial, são todos de quatro andares, a maioria com pinturas descascadas nas cores salmão ou verde claro. Nas sacadas e janelas, varais suspensos com roupas secando ao vento, algo comum não só em Nápoles, mas em toda a Itália. Além, é claro, do lixo pelas ruas esperando para ser recolhido, outra característica típica da cidade.

Teria sido em um buraco como esse que Lila e Lenu deixaram cair as bonecas? Foto: Samia Mazzucco

Caminhando pelas ruas mais detalhes descritos na tetralogia vão se revelando. Vários prédios ocupam um mesmo terreno, com um pátio e um portão de entrada comuns, como se fossem minicondomínios, conforme retratado também na série da HBO. Em absolutamente todos os edifícios, não só no de Dom Achille, há aberturas gradeadas nas paredes rentes ao chão, como se fossem “janelas” dos porões, perfeitas para bonecas serem jogadas lá no fundo. 

Escola e igreja

A escola onde Lila e Lenu estudaram ganhou intervenções com as personagens que estão na série da HBO Foto: Samia Mazzucco

Na via Mario Freccia, duas construções muito presentes na história se apresentam, lado a lado: a escola fundamental e a igreja. É época de férias, a rua está deserta e a escola, que na realidade se chama Scuola Elementare Quattro Giornate, fechada e vazia. O único sinal que imita alguma vida são as intervenções na parede que dá acesso ao portão, com imagens coladas das protagonistas da série e de crianças em uniformes como se estivessem caminhando em direção à entrada. A HBO não confirma, mas também não desmente, que foi o canal o responsável pelas aplicações por todo o bairro. Fato é que as imagens ajudam a visualizar como seriam as amigas no início de sua vida escolar, quando começaram a ter seus talentos reconhecidos pela professora Oliviero. 

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A igreja da Sagrada Família, onde Lila se casou em uma longa cerimônia, está fechada, costume em pequenos bairros do país, que só abrem as portas para as missas de domingo. Os “jardinzinhos” ao lado da igreja em que as protagonistas liam fotonovelas quando crianças, no entanto, se chegaram a existir não estão mais lá. Não há área verde ao redor, apenas quadras de esportes e um parque de recreação infantil cercado por muros.

A poucos metros dali fica a praça do bairro, Piazza Francesco Coppola, arborizada e com duas carrocinhas encostadas em uma de suas esquinas, uma de peixe fresco e outra de lanches. A possível clientela, porém, é mínima e ninguém compra nada. Alguns poucos idosos sentados nos bancos da praça jogam conversa fora em dialeto napolitano enquanto aproveitam a sombra das árvores. Um grupo de jovens montados em suas vespas, no melhor estilo Solara, conversa mais animadamente.

Estabelecimento típico no bairro: bem poderia pertencer aos Solara Foto: Samia Mazzucco

Os prédios dessa área são levemente mais bem cuidados e com alguns detalhes nas fachadas um pouco diferentes do resto do bairro. Um deles, inclusive, tem uma foto de Lenu adolescente ocupando toda uma janela, de olho na praça. Mas, de acordo com as descrições dos livros, as casas dela e de Lila eram no Estradão, e não nos edifícios da praça, onde provavelmente seria maior a chance de morarem os Carracci ou os mafiosos Solara.

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E falando na família toda poderosa, avista-se na esquina oposta à praça um bar chamado Parisi, que facilmente poderia se chamar Solara. Tipicamente italiano, o estabelecimento ostenta um letreiro com propaganda de marca de café, item indispensável em qualquer cardápio no país, além de bebidas alcoólicas e croissants doces, expostos em uma vitrine externa. 

Biblioteca

A biblioteca em que Lila pegava livros em nome de toda a família Foto: Samia Mazzucco

Bem em frente ao bar, do outro lado da rua, fica a Biblioteca Popolare Rione Luzzatti. Na ficção, as amigas são frequentadores assíduas da biblioteca do bairro, chefiada pelo professor Ferraro. Em especial, Lila, que para poder ler mais livros ao mesmo tempo faz cadastros de toda a sua família. Fechado por conta das férias, o prédio também tem sua fachada marcada por imagens das protagonistas e do professor, além de uma séria professora Oliviero na janela.

Tomando o rumo de volta pelo Estradão, a vista alcança além das fronteiras do bairro, do outro lado da ferrovia, onde se veem prédios um pouco menos velhos e com mais andares. Pelas descrições dos livros, é nessa região que fica o bairro novo, local em que Lila foi morar após se casar com Stefano Carracci, em um apartamento próprio com água quente, banheira e vista para o Vesúvio.

É hora de atravessar o túnel, desta vez para ir embora do bairro - como era o grande desejo de Lenu. Mas, diferentemente dela, já com vontade de voltar.

Rione Luzzatti - ou simplesmente, 'o bairro - está cheio de intervenções com personagens da série da HBO Foto: Samia Mazzucco
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