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Eu odeio criança

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Por Monica Nobrega
Atualização:
Há quem sinta pânico ao ver um bebê em um voo de longa duração.Foto William Whyte Foto: William Whyte

Escutei a frase do título desta coluna há duas semanas dentro de um avião. Era um voo de duas horas; na metade dele, um bebê começou a chorar alto. Instantes depois do começo do choro, meu vizinho de poltrona disse para a mulher que o acompanhava, num tom de voz normal, nem gritado, nem cochichado: “Até que demorou para esse bebê começar a chorar, eu odeio criança em avião”.

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Foram muitos os voos por essa vida afora em que vi passageiros manifestarem reações de incômodo pela presença de crianças.

Acontece o tempo todo, ou não existiriam tantas histórias espalhadas pela internet de famílias que gastam tempo e dinheiro preparando kits com protetor de ouvido, bala, chocolate e bilhetinho fofo pedindo desculpas prévias e implorando um pouco de empatia com seus bebês caso fiquem impacientes durante o voo (e quem não fica?). Não existiriam as “quiet zones”, ou zonas de silêncio que vêm sendo criadas por companhias aéreas – um conjunto de fileiras onde passageiros com idade inferior a 12 anos não podem se sentar. A AirAsia, da Malásia, tem “quiet zones” em seus voos há cerca de três anos; a low cost indiana IndiGo criou as suas em 2016.

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Na edição mais recente da maior feira de turismo de luxo do País, ao me apresentar um hotel que se define como “de charme”, a relações públicas do empreendimento mostrou a foto de uma piscina de mais de 1 mil metros quadrados. E então, com cara de quem guardou o melhor para o final, sentenciou: “E nós não aceitamos crianças”.

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É só mais um caso. A moda dos hotéis que não recebem hóspedes menores de 12 anos se espalha como praga. Há até hospedagens que vão além e aliam segregação e oportunismo: para não perder o potencial de mercado de datas como os dias das mães e dos pais, aceitam famílias com filhos apenas nestes períodos específicos. E ainda divulgam isso como se estivessem fazendo um grande favor a alguém.

Há também os restaurantes. Quantos casos de estabelecimentos que não aceitam crianças passam pelas suas redes sociais a cada ano?

As justificativas são várias. É o modelo de negócio. A infraestrutura do lugar que não comporta os pequenos. É o direito de descansar ou fazer uma refeição sem o barulho da criançada por perto. São essas crianças de hoje em dia que não sabem se comportar e chutam a poltrona da frente.

Posso até lembrar aqui que os chatos da piscina ou da outra mesa podem facilmente ser aquele grupo de casais bebendo uísque com energético. Mas a questão principal é que crianças são seres humanos como todos os outros. Excluir seres humanos não é um direito. Ninguém tem o direito de escolher que tipo de pessoa aceita ou não ter por perto.

Isso se chama discriminação, e parece que só contra crianças ela é plenamente tolerada nos dias de hoje. Tente imaginar se um hotel, restaurante ou voo decidisse não aceitar idosos ou pessoas com deficiência física – e ainda divulgasse isso orgulhosamente, como se fosse um diferencial, uma vantagem. Pense no tamanho do barulho e dos boicotes, com toda razão.

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A verdade é que, sob o pretexto de que empresas privadas podem escolher qual público querem atender, uma parte da indústria do turismo pratica e dissemina o discurso de ódio contra crianças. Soa pesado demais? Pois essa postura de discriminar crianças, de considerá-las inconvenientes e ainda divulgar isso é só mais uma evidência de um tipo de pensamento individualista, que rejeita as diferenças e considera que o outro tem menos direitos. Discurso de ódio contra crianças, sim. O turismo precisa falar sobre isso.

Isso não é sobre leis. Não é sobre querer ou não ter filhos. É sobre em que tipo de mundo queremos viver. Como disse em recente entrevista um dos meus escritores preferidos, o britânico Ian McEwan, “alguém que não pode tratar bem as crianças está em bancarrota ética”.

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