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Franceses tiram ferrugem da bicicleta na saída do confinamento

Governo francês cria programa milionário para incentivar população a trocar o transporte público e o carro pelas bikes

Por Nathalia Garcia
Atualização:
Homem pedala às margens do Rio Sena, em Paris Foto: Gonzalo Fuentes/Reuters

PARIS

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“Não sou um ciclista experiente, minha bicicleta estava guardada há 15 anos. Vim trazê-la para revisão porque devo retomar o trabalho e não quero usar o transporte público”, conta Philippe Chabrol, morador de Paris, na fila de espera na entrada da oficina Ça Redémarre. O medo de contaminação pelo novo coronavírus nos trens, metrôs e ônibus, nos quais é difícil respeitar o distanciamento de um metro entre os passageiros, tem levado muitos franceses a privilegiarem a bicicleta como alternativa de mobilidade na saída do confinamento, iniciada em 11 de maio. 

Para incentivar a população a realizar os deslocamentos cotidianos em duas rodas e, assim, evitar uma segunda onda da epidemia de covid-19, as autoridades francesas criaram um fundo de 20 milhões de euros (cerca de R$ 114 milhões) para o programa Coup de Pouce Vélo (Empurrão à Bicicleta, em tradução livre). A iniciativa, liderada pelo Ministério da Transição Ecológica e Solidária, inclui um incentivo de até 50 euros (equivalente a R$ 300) para financiar a manutenção de bicicletas usadas. A medida impulsiona ciclistas mais ou menos ativos a procurarem o serviço de uma das mais de 3 mil oficinas de reparação cadastradas. 

É o caso do ciclista Alexandre Pountzas, que decidiu fazer a manutenção de suas duas bicicletas para aproveitar o bônus do governo. “Eu não tinha grande necessidade, mas disse que seria o momento de fazer algo mais profissional. E quis também apoiar um pequeno comerciante.”

Menos de 24 horas depois da reabertura ao público, a oficina Ça Redémarre acumulava diante de sua fachada mais de uma centena de bicicletas à espera de manutenção. Enferrujadas, com os pneus vazios ou secos, ou com problema nos freios, muitas precisam de revisão completa. “Acredito que já temos trabalho para duas semanas de prazo. Não sei se continuaremos aceitando novos clientes”, afirma o sócio Alexis Mesplede. O longo tempo de espera não desanima os franceses. “Sem outra solução”, Philippe Chabrol pretende continuar em home office enquanto sua bicicleta estiver na oficina. Alexandre Pountzas, por sua vez, planeja alternar o uso de suas bikes quando necessário. 

Tendo a bicicleta como instrumento de trabalho, o repórter fotográfico Lyam Bourrouilhou encontrou na Repair and Run uma solução mais rápida para um problema de freio. A oficina parisiense conta com quatro técnicos no local e mais dois profissionais itinerantes. “As pessoas deixam a bicicleta de manhã e retiram no fim do dia. Nós quase preenchemos nossa capacidade. De dois ou três atendimentos, passamos a oito assistências diárias e potencialmente até mais”, avalia o funcionário Dimitri Morin.

Até o dia 23 de maio, o programa Coup de Pouce Vélo contabilizou cerca de 45 mil operações finalizadas em mais de 2 mil oficinas. Os dados são da Federação Francesa de Usuários de Bicicleta (FUB), designada para pilotar o projeto, identificar os prestadores de serviços para criar a plataforma e gerenciar fundos. 

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Fila de parisienses para arrumar as biciletas na oficina Ça Redémarre Foto: Nathalia Garcia

O sucesso do programa desde os primeiros dias indica que o objetivo de 300 mil contemplados seja atingido muito antes do prazo de 31 de dezembro de 2020. Elisabeth Borne, ministra da Transição Ecológica e Solidária (equivalente à pasta do Meio Ambiente) da França, já sinalizou que o plano pode ser ampliado. Além de financiar reparos, o governo anunciou assumir 60% dos custos de instalação de locais de estacionamento de bicicletas e apoiar formações gratuitas para os cidadãos aprenderem a circular de bike em segurança pela cidade.

Demanda para todos

Muitas pessoas ainda desconhecem o incentivo, como Christophe Garabige, que contratou o serviço na Cycles Sport Urbain, oficina não credenciada no programa. Único responsável da loja, Yvon Ribou, aponta como justificativa para não ser incluído na rede referenciada dificuldades logísticas, como a falta de tempo para realizar o procedimento de inscrição dos clientes. No entanto, a decisão não tem afastado a clientela. “Em menos de três dias, arrumei 40 bicicletas. Visto que durante dois meses tive dificuldade financeira, vai compensar.” 

Além da demanda de manutenção, há também uma grande procura por novas bikes. A brasileira Paula Lan Goulart, que se mudou para Paris no início deste ano, pretende adquirir uma bicicleta elétrica para realizar o trajeto de 8,5 quilômetros entre sua casa, em Neuilly-sur-Seine, e seu trabalho em Rueil-Malmaison, ambos nos arredores de Paris. 

“Eu já tinha intenção de adotar uma vida mais saudável e, com essa pandemia, pegar o metrô no horário de pico realmente me assusta. Minha ideia é voltar a trabalhar de bicicleta, e o metrô ser uma exceção”, conta. Com alguns modelos em mente, ela reconhece que a compra não seria uma opção se não houvesse o reembolso de até 500 euros (cerca de R$ 3,1 mil), proposto pelo departamento no programa Île-de-France Mobilités.

Serviço compartilhado

Circular pelas ruas de Paris sobre duas rodas também é opção para quem não tem bicicleta própria, graças ao serviço público de aluguel Vélib, disponível na capital francesa desde 2007. Reforçar as condições de higiene para prevenir a disseminação do novo coronavírus é um dos pontos-chave do plano de ação do sistema compartilhado para a saída do confinamento. Lavar as mãos antes e depois da utilização da bike e usar luvas estão entre as recomendações. “Tenho medo de ser contaminado, mas isso não me impede de usar a Vélib. Lavo as mãos antes e depois, seria ótimo se colocassem desinfetantes nas estações”, diz Martin Daheron. 

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Mas muitos dos usuários que chegam à estação da rua de la Roquette – sem luvas e máscara – confiam em certas medidas preventivas, como o uso do álcool em gel, para evitar uma possível contaminação. Três dias depois da reabertura, em 11 de maio, o número de trajetos cotidianos já passava dos 90 mil, em uma frota composta por mais de 19 mil bicicletas Vélib.

“Coronapistas”

O incentivo ao uso de bicicletas no período pós-confinamento também tem como objetivo reduzir o fluxo de carros em cidades como Paris, onde o trânsito pode piorar se os moradores derem preferência a transportes individuais durante a pandemia. A ministra Elisabeth Borne faz um apelo: “Enquanto 60% dos trajetos feitos na França são inferiores a 5 quilômetros, as próximas semanas representam uma oportunidade para muitos franceses, já ciclistas ou não, escolherem a bicicleta para deslocamentos de proximidade.” Para incentivar o movimento, o governo apoia o desenvolvimento de ciclovias temporárias.

A capital francesa prepara 50 km de ciclofaixas adicionais, chamadas por moradores de “coronapistas”, marcadas pela pintura em amarelo e separadas das vias por blocos de cimento. Apesar da rápida expansão, o fechamento de parques e jardins na região parisiense, caso do Parque de la Vilette, é um impasse, já que os ciclistas são obrigados a fazer grandes desvios de trajeto. Os responsáveis pela medição em Paris, que registram a frequência nas ciclovias entre 6h e 23h, contabilizaram mais de 126 mil bicicletas em circulação no dia 23. 

Algumas vias, como a Rua de Rivoli, foram reservadas para bicicletas, pedestres ou veículos autorizados. Vale lembrar que a França soma, em todo o seu território, 30 milhões de bicicletas para uma população de quase 67 milhões de habitantes, sendo 2,2 milhões em Paris. 

A França não é o único país da Europa a apostar nas bicicletas para combater a propagação do novo coronavírus. O secretário de Estado dos Transportes do Reino Unido, Grant Shapps, anunciou um pacote de 2 bilhões de libras (cerca de R$ 14 bilhões) até 2025 para o incentivo de ciclismo e caminhadas, sendo 250 milhões de libras (aproximadamente R$ 1,7 bilhão) destinados para a implantação de ciclovias temporárias. Já a Itália aprovou um projeto que concede bônus de até 500 euros (cerca de R$ 3,1 mil) para ajudar os moradores de cidades com mais de 50 mil habitantes a comprarem uma bicicleta. Iniciativas semelhantes foram lançadas na Espanha, Alemanha, Bélgica, Áustria...

Veio para ficar?

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Mas será que essas medidas serão suficientes para, de fato, mudarem os hábitos dos europeus de forma durável? “Eu vejo uma oportunidade. Faço parte dos otimistas”, torce o ciclista Alexandre Pountzas. “Acho que se, efetivamente, os franceses não tiverem medo da circulação, se a poluição não for um problema, se se sentirem seguros e virem que é bastante agradável, sobretudo no verão, acredito que seja possível”, confia Philippe Chabrol, pronto para voltar à ativa. 

Otimismo também por parte da Federação Francesa de Usuários de Bicicleta. “Com a crise do desconfinamento, a França enfrenta um desafio inédito. As coletividades entenderam rapidamente que a bicicleta era a única coisa que podia ser tentada em tão pouco tempo, para evitar a correria no transporte público ou até mesmo o retorno maciço dos carros. Penso que o fato de a bicicleta estar ajudando a França a passar por essa crise facilitará a ação das coletividades. E algumas mudanças serão irreversíveis”, projeta o presidente da FUB, Olivier Schneider.

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