Sempre tive cá para mim que pinturas rupestres fossem como aqueles desenhos que ornam paredes das casas onde moram crianças pequenas. Bonequinhos rústicos, modelo palito, cinco traços e uma bolinha, mais básico impossível. Isso até ficar cara a cara com os murais do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, que exibe a maior concentração de sítios arqueológicos do mundo. E descobrir que "rabiscos" como esses podem emocionar profundamente. Como tatuagens nos delicados arenitos, mais de 40 mil registros eternizaram seu tempo e suas crenças. Nos 1.334 sítios arqueológicos catalogados hoje na área do parque nacional - "a cada dia aparecem mais", afirma Niéde Guidon, diretora da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) -, perpetuam-se representações de caça, rituais, sexo e outros desenhos com idades entre 6 mil e 18 mil anos. Espantoso pensar que atravessaram séculos, civilizações e a implacável ação do tempo. A maior parte, quase intactos. O que confere ao lugar o título mais que merecido de Patrimônio Cultural da Unesco. Não bastassem as artes com óxido de ferro e gordura animal em incontáveis rochas, impressionam os cânions, paredões e falésias escarpados. Paisagens dramáticas. As formações, que há alguns milhões de anos eram fundo de mar e depois de rio, foram esculpidas pelo vento e o tempo. A Pedra Furada, o maior símbolo do parque, é uma prova disso. Aqui vieram à tona algumas das ossadas humanas mais antigas já registradas nas Américas, apelidadas de Zuzu e Zazá, com cerca de 9 mil anos. "A sensação é a de encontrar pessoas. Estamos atrás de identidades, de grupos. É muito emocionante descobri-las", conta a arqueóloga Gisele Felice. Sem falar nos fascinantes e gigantescos animais da megafauna, como o mastodonte e a preguiça-gigante. Sobra história, portanto.Estrutura. Para que continue atravessando gerações, o passado deve estar ao alcance de todos. E a boa notícia ali é que, dos 172 pontos de visitação abertos ao público com passarelas e sinalização explicativa, 17 estão adaptados para quem tem dificuldades de mobilidade. Não apenas dentro do parque a estrutura é convincente. À exceção de um aeroporto mais próximo e talvez de uma hospedagem de padrão elevado, a região parece preparada para triplicar seus atuais 20 mil visitantes anuais. A começar pelos impecáveis 530 quilômetros de estradas que separam a capital Teresina da pacata São Raimundo Nonato e seus 32 mil habitantes. Basta ponderar e considerar que estamos em um dos Estados com pior IDH do País para perceber o quanto essa infraestrutura é razoável. Na categoria "excepcional" uma atração se sobressai. O Museu do Homem Americano reluz como uma joia na caatinga. Seu tesouro está nas vitrines, que revelam quanto o passado foi generoso com a região. Três a quatro dias é o período ideal. O suficiente para o olhar de um simples turista ficar treinado a destrinchar os desenhos mais complexos e até mesmo a identificar estilo e período a que pertencem. O que só se consegue, logicamente, na companhia de um guia credenciado (em média, R$ 100 a diária para grupo, de carro ou de moto), e não inclui acesso ao parque (R$ 12,50). A entrada principal está próxima ao vilarejo do Sítio do Mocó, a 20 quilômetros de São Raimundo Nonato, mas ali há apenas uma estrutura básica de camping. A oportunidade de compreender as rochas, suas formações e variações faz do lugar uma Disneylândia para geólogos. Mas não é preciso ser estudioso para se apaixonar pela Serra da Capivara. Ali, a caatinga revela o mistério de suas árvores, que mudam do cinza-quase-morto para o verde-cheio-de-flores com a chuva, de janeiro a abril. E o cancã, um dos vários pássaros que habitam essas paradas, acompanha sua jornada com um canto característico. Aqui não há cachoeiras, rios caudalosos ou poço azul cristalino. O calor é implacável e seus melhores amigos na caminhada serão boné, água e barrinhas de cereal. O que a Serra da Capivara propicia está mais para uma viagem visceral às próprias origens, que revela um passado distante e, ao mesmo tempo, tão presente.