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Lugares de cultura e afeto

Espaços queridos dão lugar aos novos tempos, mas deixam boas recordações na memória

Por Bruna Toni
Atualização:
Memórias guardadas na Estção da Luz Foto: Sérgio Castro/Estadão - 12/6/2014

Antes de o último samba tocar, o apelo da Dona Nilce, a dona do bar, era para que continuássemos levando-o com a gente. Os versos de Não Deixe o Samba Morrer, canção de 1975 eternizada na voz de Alcione, vieram em seguida, fazendo muita gente chorar. As lágrimas, contudo, não eram exatamente pelo samba. Corriam pela intragável despedida que éramos todos forçados a dar àquele espaço.

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O que ocorreu ao Pau Brasil, bar de samba dos bons há 13 anos no mesmo ponto de Pinheiros, foi morte causada pela especulação imobiliária. Há alguns meses, o dono do pequeno espaço decidiu pedir seu imóvel de volta. Quis e pronto. Recusou ofertas de melhor pagamento, até. Sambou, com o perdão do trocadilho, em cima de nossos sentimentos. 

Não pense que estou a desconjurar o tal dono, que nem sei quem é. No máximo assumo um ranço. Acontece que tenho reparado no quanto despedidas de lugares podem ser marcantes na nossa vida. Lugares com os quais estabelecemos laços afetivos e sobre os quais criamos memórias pessoais e coletivas.

Há três anos, por exemplo, conheci a história do Cine São José, em São Roque, cidade do interior de São Paulo conhecida por sua produção de vinhos e alcachofras.

Além de ser um clássico cinema de rua, nostalgia que hoje em dia denuncia idade ou hipsterismo, o que o tornava tão especial, a ponto de eu recomendar a visita a amigos que fossem à cidade, eram as lembranças de quem o frequentou e a tentativa da família proprietária de reconstruí-lo. 

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Antes de ser parcialmente reaberto em 2017, depois de anos fechado, parte de seu teto desabou. Faltava dinheiro para restaurá-lo, e o incentivo dos governos à cultura, como sabemos, nunca é suficiente – isso quando ainda se considera cultura um investimento.

Com esforço dos descendentes do Sr. Vasco, idealizador do espaço inaugurado em 1951, um café foi aberto na área do hall de entrada do cinema. A ideia era tentar arrecadar dinheiro para dar continuidade à reforma. Para atrair antigos e novos visitantes, era preciso tentar resgatar o passado glorioso. Investiram em cadeiras estofadas como as da época; instalaram luzes baixas nos mesmos pontos de antes; nas paredes, penduraram cartazes de clássicos, de Oscarito e Grande Otelo. 

“Quero a groselha”, pede Ester sem se demorar no cardápio. “Ela é da época em que vínhamos assistir a filmes aqui, receita da irmã do Vasco. Tinha pipoca também. E a fila dava voltas do lado de fora”, diz ela, aos 60 anos, revivendo momentos de sua infância.Eu também fui de groselha, mesmo sem ter a bagagem memorativa de Ester.

Tudo ali me fazia querer compartilhar essa lembrança com ela. Pude conhecer a sala onde funcionava o cinema. Estava lá o teto desabado, e também as cadeiras vermelhas estofadas e o palco onde os filmes eram exibidos. “Temos um projeto para fazer desse espaço mais de uma sala de cinema,”, me disse o dono, à época. Mas, ao menos por enquanto, todos os sonhos estão suspensos. Em julho de 2018, a falta de dinheiro obrigou os donos a encerrar as atividades. 

Lembro da minha mãe contar, mais de uma vez, das viagens de trem que ela fazia, quando pequena, de São Paulo a Limeira. “Tinha o garçom passando com o carrinho. Minha felicidade era comer coxinha e tomar guaraná. Ia vendo tudo, a paisagem. O trem passava ao lado Estádio Moisés Lucarelli, da Ponte Preta, em Campinas. O apito tocava quando chegava à estação.” O trajeto não existe mais, mas toda vez que ela está na Estação da Luz, de onde partia a locomotiva, há emoção. 

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Talvez faça parte da vida ter de se despedir de certos lugares. Novos espaços chegam para criar novas lembranças, é verdade. O Pau Brasil busca nova casa, o Cine São José, novo tempo para se reinventar. E isso está aceito, é até de bom grado. Pena é a ignorância de quem vê apenas cifrões onde há tantas memórias e felicidade. Onde houve samba, filmes, trilhos e esporte (para não dizer que não falei de ti, Pacaembu). 

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