Não sei arrumar malas. Quem faz as minhas? Mamãe.
Vou tentar transformar essa confissão vergonhosa em algo edificante.
Não é que eu tenha preguiça em arrumá-las e, por isso, peça socorro aos préstimos de minha gentil genitora. A questão é que as roupas simplesmente não me obedecem. As peças não se deixam dobrar, agitam-se de um lado para o outro como se não quisessem embarcar, misturam-se com o despudor de um baile de carnaval dos anos 80. Além disso, minha memória se perde na bagunça dos panos e eu chego a esquecer até do fundamental. Pois sim, cadê as cuecas?
Sei que reside aqui uma metáfora. Minha incapacidade organizacional, minha fobia em enfrentar qualquer arrumação reflete-se na forma como levo minha vida. Sou um amassado por vocação. Minha mala é a cara da minha ansiedade. Tenho a alma amarfanhada.
Ciente do meu distúrbio, ligo para a minha mãe. Alô?
Assim, o dia que antecede minha viagem tem sempre um caráter ritualístico. Levo minha mãe para almoçar e conversamos mais do que costumamos fazer em situações cotidianas. Falamos da vida, do trabalho, das coisas da família e até da viagem. Ela diz para eu aproveitar e tomar cuidado, pergunta se estou levando dinheiro suficiente e diz para eu ligar de vez em quando. Depois do almoço, ainda saímos para tomar café e dar uma volta no bairro.
Na volta, ela põe a minha vida em ordem. Ao menos me mostra como fazer isso ao executar a arrumação da minha mala com sabedoria e precisão. Tudo se encaixa. Nada fica fora do lugar. A arquitetura do impossível se deslinda na minha frente. Roupas de frio, calças jeans, peças para qualquer tipo de condição climática e até um tênis extra.
Tento acompanhar com atenção para que, um dia, possa fazer igual. Tiro fotos para ter uma imagem-guia, um modelo. Devo ter esse talento em algum canto escondido da minha genética. Qual o quê! No fundo, sei que nunca vou chegar nesse estágio. Nunca vou ter a calma e a minúcia da minha mãe.
Se tenho um vinho em casa, abro para comemorar. Mamãe fica feliz. Peço desculpas pelo incômodo. Garanto que vou me emendar e que, da próxima vez, ela terá uma surpresa ao ser informada que eu fiz sozinho (como uma criança que acaba de tirar as rodinhas da bicicleta). Ela diz não ligar. E garante ficar contente em poder ajudar.
Penso que se eu tivesse uma namorada, ela teria de aceitar o fato que é a minha mãe quem faz as minhas malas. Oi, Freud!
Embarco leve. Sei que se algum agente de segurança abrir minha mala, vai, no mínimo, me dar os parabéns. Sou bem-vindo em qualquer país, atravesso qualquer fronteira, com minha mala impecavelmente organizada.
No começo da viagem, tomo cuidado para não desmantelar o trabalho de mamãe. Tiro as peças com cuidado e evito fazer muitas trocas para não desarrumar o belo quebra-cabeças. Consigo manter esse equilíbrio por quatro ou cinco dias. Depois, entrego-me ao despropósito da bagunça e de roupas esparramadas pelo chão do hotel.
Claro, tenho problemas na volta.
A mala, então, tem a minha cara. É da minha única e exclusiva responsabilidade. É o retrato mal-acabado da minha inépcia. O que se vê é quase indescritível. Vem tudo junto e misturado. Roupas servindo de proteção para garrafas de uísque. Meias perdidas no turbilhão e um creme de barbear vazando. O zíper que não fecha. O peso extra que quase arrebenta a alça. E o tênis sobressalente? Dou de presente para algum desconhecido (não por caridade, mas para aliviar o peso). Eis a mala de um completo desajustado.
Por isso, não cabe aqui a vergonha do marmanjo que, aos quarenta e poucos anos, ainda precisa do socorro da mamãe na hora de fazer as malas. Não me julguem. Se julgarem, conto tudo pra minha mãe.
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