Nos passos das mulheres da cidade belga de Mechelen

Contrariando os códigos de suas épocas, moradoras da pequena cidade entre Bruxelas e Antuérpia fizeram tudo o que não era para elas: política, música, revolta proletária e até cerveja

PUBLICIDADE

Por Monica Nobrega
Atualização:
Jardim de inverno da escola Wintertuin Garden, em Mechelen. Foto: Gabriela Biló/Estadão

MECHELEN - Em meados do século 19, quando não faltavam regras de como uma moça deveria ser, a pequena cidade belga de Mechelen abriu um internato católico para 700 meninas bem nascidas. Ali se aprendia obediência, boas maneiras e habilidades artísticas. Aulas de piano faziam parte do currículo. As classes eram dadas numa esplêndida galeria com 35 pianos de madeira, cada um no seu confortável cubículo.

PUBLICIDADE

Os tempos são outros. A escola Wintertuin Ursulinen tem, hoje, 1.600 alunos, meninas e também meninos. Nenhum interno. A belíssima galeria dos pianos, com sua arquitetura art nouveau e instrumentos centenários, só é usada em concertos especiais. Mas fica aberta à curiosidade do público desde que a escola lançou, recentemente, seu programa de visitação turística. 

O esquema é de turismo comunitário. Quem guia os tours – 10 euros por pessoa – são moradores voluntários. As visitas são feitas às 14h30, aos domingos, de março a outubro; de novembro a fevereiro, apenas no terceiro domingo do mês.

A escola tem também um belo jardim de inverno com cobertura envidraçada art nouveau onde, no passado, as alunas recebiam seus familiares. E é parte importante da história de Mechelen, cidade que rende um ótimo bate-volta de Bruxelas ou Antuérpia e onde as mulheres, ao longo dos tempos, deram seu jeito de afirmar que seu lugar era onde elas quisessem, como se diz.

Sobre elas. A guia Leona De Greif é especialista na história das mulheres de Mechelen (pronuncia-se “Merrlen”, o “R” chiado, mas curto). Das famosas e das anônimas – e começa por estas, à beira do rio Dyle, que cruza o centro de Mechelen e tinha importância fundamental nos séculos 18 e 19. Por causa dos pescadores e também – a guia enfatiza – das pescadoras. 

Galeria dos pianos na escola Wintertuin Garden. Foto: Mônica Nobrega/Estadão

À beira do Dyle instalaram-se fábricas de cadeiras com assento e encosto de um tipo de tecelagem manual de palha. Crianças e mulheres eram empregadas preferenciais, por executarem um trabalho supostamente mais preciso e delicado. Na prática, eram obrigadas a gastar o minguado salário em matérias-primas superfaturadas nos armazéns de seus patrões, o que rendeu uma revolta de trabalhadoras. “Uma típica história do século 19, mas protagonizada por mulheres”, diz De Greif. 

Hoje, o rio tem um passeio de madeira de mais de um quilômetro rente à água e recebe tours de barco no verão. Também na margem do Dyle ficava a primeira cervejaria comandada por uma mulher na Bélgica, a Lamot. Mechelen popularizou o termo brewster, cervejeira. “Cerveja aqui era um negócio feminino”, diz a guia. 

Publicidade

Hoje, a cervejaria mais famosa de Mechelen, com tour guiado e um gostoso restaurante, é a Het Anker (8 euros). Fica no prédio de um antigo hospital do século 15 mantido por beguins, mulheres religiosas. As beguins faziam cerveja para dar aos doentes: era uma bebida mais saudável que a água sem tratamento da época. 

Jardins do palácio de Margaret da Áustria. Foto: Gabriela Biló/Estadão

No belo palácio renascentista de Margaret da Áustria, a guia conta que a então regente da Holanda (de 1507 a 1530) foi dada por seu pai em casamento três vezes. O primeiro noivo a recusou quando ela tinha 11 anos, porque encontrou noiva melhor; do segundo e do terceiro, enviuvou pouco depois do matrimônio. Aos 24 anos, Margaret cansou. Disse ao pai que não se casaria com mais ninguém, e foi cuidar de seus afazeres de rainha.

Com 97 metros de altura e 513 degraus, a torre da Catedral de St. Rumbold é o melhor mirante de Mechelen (8 euros). Lá no alto, dois carrilhões com 49 sinos sonorizam a cidade várias vezes por dia – diz-se que moradores se criam ouvindo sinos. Em 1922, Mechelen abriu a primeira escola de carrilhões do mundo, a Royal Carrilon School, e Adele Colson estudou ali por 6 anos, contra a vontade dos religiosos. Na prova final, a despeito de seu bom desempenho, o diretor da escola disse que Adele jamais tocaria sinos numa igreja, o que a fez rasgar o diploma. Mas Adele, filha de Mechelen, tornou-se a primeira mestre carrilloneur da Bélgica.

Na galeria abaixo, veja mais fotos de Mechelen. 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.