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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

O anjo do rooftop

Perto da cozinha, uma garçonete chora; no bar, um homem pede sua terceira dose de uísque; no banheiro, a modelo enfia o dedo na garganta para provocar o próprio vômito. Por qual deles interceder?

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Por Gilberto Amendola
Atualização:
A decisão não é dele. É de quem? Foto: Di Vasca/Divulgação

A mesa é arrumada como se o cliente fizesse o óbvio – e se sentasse de frente para a paisagem, para uma das vistas mais disputadas da cidade. 

Mas, sozinho, ele prefere ficar de costas para o principal atrativo do restaurante – já que a comida não é o forte do lugar.

A escolha causa uma certa confusão na cabeça do gerente: “tem certeza, senhor?”, “o senhor está esperando mais alguém ?”. 

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O cliente é seco, mas educado nas respostas. “Sim, tenho certeza.” “Não, não estou esperando ninguém.”

Seria mesmo difícil falar a verdade e explicar que ele está acostumado a apreciar a cidade de uma posição muito mais privilegiada do que aquela. 

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Então, o cliente recebe o menu. A sugestão da casa são as lagostas vivas do aquário – que depois de “pescadas” são levadas diretamente para a panela. 

Ele pede uma taça de vinho branco e um tempinho para pensar. O cliente observa o ambiente. Experiente, consegue identificar todos que estão ali. Mas por qual deles ele teria sido enviado dessa vez? 

Em uma mesa próxima, um casal come em silêncio. Tal qual um faroeste clássico, a questão é saber quem vai apertar o gatilho primeiro. Qual dos dois irá começar a conversa definitiva que irá resultar no fim de um relacionamento de quatro anos.

Ele pede o sal. Ela passa sem olhar na cara dele. Os dois começam a comer – e mastigar suas respectivas pedras de rancor e frustração. 

Perto da cozinha, uma garçonete chora. Acabou de ser demitida. Pela terceira vez, na mesma semana, confundiu-se com o pedido, o maldito pedido de sempre: “Coca, sem pedras de gelo, mas com uma rodela de limão”. Abalada com a notícia da demissão, fixa o olhar em uma faca. 

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No bar, um homem pede sua terceira dose de uísque. O esquema de lavagem de dinheiro e emissão de notas frias foi descoberto pela matriz norte-americana. O escândalo vai estar nos jornais amanhã. O advogado não responde mais suas ligações. Pensa em fugir do País e em algo pior. 

No banheiro, a modelo enfia o dedo na garganta para provocar o próprio vômito. Está só pele e osso, mas mesmo assim ela se acha gorda. A garota acredita que os vômitos já não são mais suficientes e cogita começar a usar uma droga pesada que resolva seu problema de peso e autoestima. 

Duas crianças brincam de pega-pega e correm por entre as mesas. Logo, uma delas deve se desequilibrar e bater a cabeça em uma das quinas. Vai doer. E, talvez, deixar uma marca para o resto da vida.

O cliente sentado de costas para a cidade acompanha todos os acontecimentos e aguarda um sinal. Está impaciente. 

Por qual deles deve interceder? As crianças e a garçonete seriam escolhas simples e justificáveis. Mas o casal não mereceria um recomeço? Um corrupto não pode ter uma segunda chance? A modelo não tem o direto de se ver livre de uma doença?

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A decisão não é dele. O cliente de costas para a vista mais disputada de São Paulo está lá apenas para cumprir uma ordem. Ele dá um gole no vinho e continua observando.

Será que dessa vez sua missão se resume a apenas contemplar os acontecimentos?

No centro do restaurante, um sujeito se aproxima do aquário e aponta justamente para a lagosta mais majestosa entre todas elas. Prontamente, um funcionário pega uma redinha e começa sua tentativa de capturar a escolhida. Ela tenta se misturar às outras lagostas, procura fugir do seu algoz. Por fim, entende que o seu destino é a panela de água fervente e a morte. 

Só então o anjo do rooftop recebe a ordem, o sinal, a iluminação celeste que esperava. Quem diria? Ele ri respeitosamente. Acha a decisão curiosa, estranha, difícil mesmo de justificar, mas, ao mesmo tempo, sábia e de uma beleza inatingível.

Sem apetite, o sujeito perto do aquário desiste da lagosta. 

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