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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

O húngaro e o gato

A porta do quarto onde o turista se hospedou estava trancada - e assim se manteve

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Por Gilberto Amendola
Atualização:
'Minha alergia a gatos desapareceu. Minha namorada quis ficar com ele.' Foto: Felipe Mortara/Estadão

O turista chegou em casa depois de alugar um quarto por meio de um desses aplicativos. Trazia uma mala, usava óculos escuros e tinha um chapéu que parecia ter saído de um filme do Indiana Jones. De acordo com o que foi informado, ele era húngaro. Talvez não dominasse o inglês. Ou fosse tímido. O fato é que não abriu a boca quando entreguei as chaves do cômodo. Ofereci café e ele também não aceitou ou não entendeu minha oferta.

Estava disponível para dar dicas e jogar conversa fora. Mas ele simplesmente seguiu para o quarto. Ouvi o barulho da chave. Tinha se trancado. Pensei que, talvez, estivesse com dor de barriga. Naquele dia, não vi mais o turista. O aluguel do espaço era por mais quatro dias e tudo já estava pago. 

DIA 1

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De manhã, passei pelo quarto do húngaro. Não costumo fazer isso, mas encostei meu ouvido na porta para tentar ouvir algo. Nem um som. Ele não roncava. Era sábado e o gringo sairia do quarto a qualquer momento para aproveitar o sol, encher a cara de caipirinha, aprender a sambar e, enfim,

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. Minha namorada passou em casa. Contei sobre o hóspede. Ela disse que provavelmente a culpa era do jet leg, mas que se ele não abrisse aquela porta em algumas horas seria o meu dever checar se estava tudo bem. Concordei. 

Eu e ela saímos para correr no parque e almoçar com amigos. Torci para que, na volta, o gringo já estivesse voltando de algum rolê turístico. Quando voltamos, a porta do quarto dele continuava trancada. E assim se manteve.

Tive uma crise de espirros, tosse e meus olhos começaram a lacrimejar. Sou alérgico a gatos. Mas não tinha nenhum gato em casa.

DIA 2

Não dormi bem. Tive um pesadelo estranho. Eu dirigia pela cidade, mas não reconhecia nada. Nenhum prédio, nenhum comércio, nada. Me senti perdido e parei o carro para pedir informações. Quando baixava o vidro do carro, a pessoa para quem eu perguntava era o húngaro. Ele me respondia com uma gargalhada e desaparecia.

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Quando me levantei, minha namorada estava em pé no corredor, encostada na porta do quarto do gringo. 

 – Você precisa abrir essa porta.

 – Calma, ele pagou pelo quarto, pode ficar nele – respondi.

 – Você sabe que isso não é normal. 

 – Você também está sentindo esse cheiro de gato molhado?

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DIA 3

Não saímos de casa. Na verdade, ficamos em vigília esperando algum movimento do húngaro. Cheguei a pegar o telefone para ligar para a polícia. Desisti. Minha namorada estava decidida a entrar naquele quarto (o interesse dela pelo turista me deixou com ciúme). E se ele estivesse morto? Se tivesse desmaiado? Já me imaginei envolvido em um caso policial, com um estrangeiro morto por overdose na minha casa. 

Eu tinha que entrar naquele quarto. Além disso, eu quase não conseguia respirar. Estava tendo uma reação alérgica grave. Achei que ia morrer. 

Primeiro foram batidas fortes. Depois trancos com o ombro. Nada. Minha namorada gritou e começou a chutar a porta. Lá fora, chovia – uma tempestade inesperada. 

A porta do quarto do húngaro se abriu lentamente.

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DIA 4 

O quarto estava intocável. A sensação é de que ele estava maior. Andamos uns 10 minutos até chegar na cama. Ventava. A namorada apertou minha mão. De repente estávamos em uma das nossas viagens de férias. Estávamos em Roma vivendo de novo aquilo que tínhamos vivido há 3 anos. Eu entregava uma moeda para um morador de rua – esse morador de rua era o húngaro. Depois, estávamos em um restaurante em Buenos Aires, em 2014. O garçom que nos atendia na mesa era o húngaro. Por fim, era Londres, em 2015, e o motorista do ônibus de turismo que nos guiou pela cidade era o húngaro. Sem que notássemos, o quarto voltou ao normal. No canto, em cima da cama, um gato miava baixinho. 

HOJE

Minha alergia a gatos desapareceu. Minha namorada quis ficar com ele. Aliás, o gato está aqui me observando enquanto escrevo esse relato. Não sei o que aconteceu com o húngaro. O aplicativo de locação de quartos disse que não houve nenhuma reclamação por parte do hóspede – e o pagamento foi feito de maneira correta. Takdpacbfee73033....desculpem, o gato subiu no teclado. Acho que já contei tudo o que eu podia contar. 

*Envie sua pergunta para viagem.estado@estadao.com.

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