PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

O retorno de um amigo imaginário

Tenho mais uma semana de quarentena. Testei positivo para o coronavírus

Foto do author Gilberto Amendola
Por Gilberto Amendola
Atualização:

A última vez que a gente conversou eu tinha o quê? Acho que uns 9 ou 10 anos? Não me lembro de uma despedida específica. Um belo dia você simplesmente não apareceu mais. Te procurei embaixo da cama, dentro do armário e até da geladeira. Ia dormir com a sensação que a qualquer momento você iria me chacoalhar pelo ombro.

Nada disso aconteceu. Você sumiu da minha vida e eu me esqueci de você. Simples assim. 

PUBLICIDADE

Na época, minha mãe disse que eu já estava ficando mocinho – e para eu crescer era mandatório que você desaparecesse de vez. Foi como se você nunca tivesse existido. Aliás, acho que você nunca existiu mesmo.

Ainda assim, fico feliz que você tenha decidido dar o ar da graça justamente agora. 

Como já deve ter notado, não tenho muito o que fazer aqui. Assisto televisão, fico maratonando umas séries idiotas, atendo o telefone, falo sobre meu estado febril, presto atenção na minha tosse seca e espero. Ah, o médico nem desconfia, mas fico me entupindo de salgadinho. Quer um pouco? Tem refri na geladeira.

Publicidade

Tenho mais uma semana de quarentena. Testei positivo para o coronavírus. Espero que isso não te assuste – acredito que amigos imaginários sejam imunes ao vírus, né?

Quando eu era criança a gente passava horas conversando sobre coisas incríveis que eu nunca consegui me recordar. Já adianto que agora meus assuntos são menos interessantes. Quer falar da alta do dólar? Dos riscos à democracia na América do Sul? 

Não sei se você tinha muitas expectativas em relação ao meu futuro. Aos 8 anos, eu era astronauta, cientista, super-herói, poeta, artilheiro, mágico... Eu era um projeto interessante de adulto. Hoje, sei que não sou um desastre completo, mas sou apenas isso aqui que você está vendo – e entendo se você não achar tanta graça.

Lembra da vez que eu tive sarampo? Acho que rolou algo parecido. Fiquei uns dias de molho em casa. Na ocasião, brincamos de futebol de botão, Comandos em Ação, Playmobil, baralho, bola e boneca.

Sim, quando minha mãe entrou no quarto eu estava brincando com a boneca da minha irmã e falando sozinho. Ela não me disse nada naquele momento, mas na semana seguinte, já livre do sarampo, fui visitar uma psicóloga.

Publicidade

Você ri, né? Hoje isso seria um absurdo, minha mãe não é uma pessoa preconceituosa. Mas nos anos 80 era assim mesmo. 

Eu era um projeto interessante de adulto. Hoje, sei que não sou um desastre completo, mas sou apenas isso aqui que você está vendo – e entendo se você não achar tanta graça Foto: Di Vasca/Estadão

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Outra lembrança bacana foi sua companhia no meu primeiro dia de aula. Eu tinha muito medo de todos aqueles moleques que eu não conhecia e que, pra mim, eram ruins e valentões. Você ficou do meu lado o tempo todo, dentro da sala de aula e na hora do recreio. Quando um dos meninos tentou tomar meu lanche, foi você quem jogou o suco de laranja na cara dele, não foi? Ué? Não? Eu nunca reagiria assim. Fui direto para diretoria e fiquei sem videogame por uma semana.

Você me deixou muito bravo quando ficou rindo da minha primeira paixão. Lembro que ficava fazendo caretas atrás da garota, que me fazia rir de nervoso e ficar vermelho. O dia que eu decidi me declarar você ficou todo emburrado, mas prometeu me ajudar. Eu só tinha 8 anos, não sabia o que fazer. Se eu não me engano, a ideia do chocolate e do beijinho no rosto foi sua. Bom, ela gostou do chocolate, mas começou a chorar quando tentei o beijinho. Ela estava certa, né? De novo, fui para diretoria, fiquei duas semanas sem videogame e minha mãe me levou para a psicóloga pela segunda vez. Hahaha...

Que bom te ver rindo desse jeito. Acho que não ficou nenhum sentimento ruim entre a gente, não é? Eu não quis te esquecer. Quero dizer, não foi de propósito. Quando a infância vai embora, a gente acaba esquecendo de muita coisa importante e legal. Crescer é inevitável, mas não é tão incrível. Sabe, as pessoas valorizam muito isso que chamam de “amizade verdadeira”. Acho que precisam começar a valorizar mais as “amizades imaginárias”. 

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.