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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

O senhor cobrador e a vida passageira

A vida passa depressa; se você não fizer um sinal qualquer, ela não vai parar no ponto desejado

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

A cada aumento de tarifa o medo de errar no troco traz um pouco de emoção à rotina do senhor cobrador. Embora a maioria dos usuários utilize bilhetes eletrônicos, ele prefere não arriscar. Torce por reajustes cheios, redondos e de matemática fácil. Detesta os valores quebradinhos e as moedas de cinco centavos.

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Fora isso, é de boa.

São quatro viagens por dia – que divide com um motorista que quase não abre a boca. Na maior parte do tempo, consegue se entreter com a leitura de jornais – que nem sequer precisam ser jornais do dia.

Certa vez, o senhor cobrador leu na seção de horóscopo de um periódico do mês anterior que o sol alinhado ao quadrante correspondente ao seu signo ascendente indicava a possibilidade de encontrar um grande amor.

Ora, se tem alguém que pode encontrar um grande amor nessa cidade é o senhor cobrador. Lá, daquela posição privilegiada, sentado no melhor lugar, ele pode avaliar as probabilidades românticas de quem passa, sobe ou desce do ônibus.

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O senhor cobrador entendeu que a vida passa depressa Foto: DI Vasca/Estadão

A viúva que desce na Faria Lima, por exemplo, deve ter tido um casamento feliz e filhos superprotetores. Em uma escala de 0 a 10, a chance de dar certo era de 2. Por outro lado, a estudante que sempre sobe no Largo da Batata deve ter problemas em casa e um ex-namorado ciumento – na mesma escala a chance era de apenas 1. 

Mas, como antecipou o horóscopo do mês passado, aconteceu de o amor aparecer. Ou aquilo que o senhor cobrador achou por certo chamar de amor. Um amor desses que nasce assim quase do nada, por uma besteirinha distraída. O tipo de amor que se vive em segredo, calado. 

A moça subiu no coletivo e sacou uma nota de R$ 20. O senhor cobrador disse que não tinha troco e que ela poderia descer pela porta da frente. A moça, constrangida, avisou que precisava descer um ponto depois da Praça Benedito Calixto.

O senhor cobrador foi prestativo com as informações. O motorista até estranhou a desenvoltura do colega quando ele perguntou para onde a passageira estava indo. 

– Entrevista de emprego – respondeu a garota.

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O ponto chegou. O senhor cobrador desejou boa sorte. E viu a mulher que apareceu no quadrante correspondente ao seu signo ascendente descer do ônibus. 

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Nos meses seguintes, ela voltou a subir muitas vezes naquele ônibus. O senhor cobrador nunca perguntou, mas pelas roupas e olhar confiante, percebeu que ela tinha conseguido o emprego. Depois, talvez, uma promoção. 

Um dia, apareceu com um anel de noivado – e dizia “eu te amo” repetidas vezes ao celular. Em outro, já tinha uma barriguinha de grávida. Olha, que coincidência, é ela com uma criança no colo e pedindo para ocupar o assento reservado. Não demora, o filho começa na escola, entra na universidade e passa a frequentar o mesmo coletivo que a mãe frequentou. 

O senhor cobrador entendeu que a vida passa depressa e que, se você não fizer um sinal qualquer, ela não vai parar no ponto que você quer que ela pare.

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