Para lá de Vladivostok

E ainda faltavam três horas de avião

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Por Antonio Prata
Atualização:

Percebi como a China era longe quando Vladivostok surgiu na telinha do avião - aquele território do War para além do qual não há mais tabuleiro - e ainda faltavam três horas de viagem. Percebi como a China era distante ao perguntar o nome do primeiro chinês com quem conversei, na esteira rolante de um supermercado e ouvir: ''Caxambu''. Caxambu?! ''Caxambu'' - mais uma vez, pensei escutar. Olhei os 50 tipos de miojo do meu lado esquerdo, os arranha-céus de 90 andares do lado direito e me dei conta de que, se o século 21 for mesmo dos chineses, as próximas décadas serão cheias de mal-entendidos. Tive uma pequena amostra dessa confusão no mês que passei em Xangai, ano passado, integrando o projeto Amores Expressos (18 autores foram para 18 países e, na volta, cada um deve escrever um romance que se passe na cidade visitada). Antes de ir, fiz a lição de casa: li Cisnes Selvagens, de Jung Chang, China, o Renascimento do Império, de Cláudia Trevisan, vi meia dúzia de filmes e saí do avião, 27 horas depois de ter partido de São Paulo, achando que iria entender o país. Bastou passar da sessão de miojos para a de chás, na esteira rolante do supermercado, para meu otimismo ir por água abaixo. Vendo que eu não entendia seu nome, Caxambu apresentou-se como John. Todos na China, hoje, adotam um nome em inglês, para facilitar a comunicação com os estrangeiros. O país sempre foi fechado para o mundo. Com a chegada de Mao ao poder, em 1949, isolou-se ainda mais (muitas pessoas nascidas no regime comunista, em cidades do interior, só viram um ocidental pela primeira vez depois da abertura, com a morte do ditador, em 1976). Caxambu-John e seus 1,3 bilhão de patrícios estão entrando atrasados no jogo e não têm tempo a perder. Xangai é o exemplo mais gritante dessa corrida para o Oeste. O Pudong, bairro de arranha-céus espelhados, centro empresarial da cidade, era apenas um enorme alagado até 1992. Agora, parece uma versão - mais limpa - do futuro de Blade Runner. Quando anoitece, as torres se acendem e toda a fachada de um dos prédios converte-se numa tela, refletindo carpas alaranjadas de 20 metros e girassóis do Van Gogh sobre as águas do Rio Huangpu. Uma linha quase inteira de metrô não existia no meu guia Lonely Planet de 2006. Em maio de 2007, no entanto, já estava pronta. No topo dos prédios em construção, guindastes com holofotes iluminam as obras incessantes, tocadas por trabalhadores vindos do interior. Se às vezes, pelas ruas, nos sentimos no cenário de Matrix, a maioria dos pedestres parecem saídos de um filme do Mazzaropi: os chineses são, antes de tudo, caipiras. Bastam dois dedinhos de prosa para oferecerem cigarros ou te convidarem a tomar um chá. São cordiais, no sentido mais profundo da palavra. Param qualquer coisa que estiverem fazendo para ajudar, mas ai de quem se colocar no caminho de uma bicicleta: leva um sabão em mandarim que não será esquecido tão cedo. Pelas ruas de Xangai, topamos com a nova elite chinesa. Consumista, kitsch, exagerada. Uma garota no metrô pode usar uma calça larga, ao estilo hip-hop, camiseta dos Ramones, jaqueta Puma, lenço Chanel e bolsa Louis Vuitton. O país que, durante a Revolução Cultural, na década de 1960, vestiu-se todo de azul, agora esbalda-se com rosa-choque, verde-limão, laranja fluorescente e, sobretudo, dourado. Nas próximas décadas, ao que tudo indica, o Ocidente vai ser ''digerido'' pelos chineses e devolvido aos nossos olhos, ouvidos e bocas numa das maiores pororocas culturais da história da humanidade. Como será quando esse quase 1,5 bilhão de pessoas começar a nos mandar, além de celulares, tênis e outras bugigangas, suas músicas de rock, hip-hop, filmes, peças, romances? Quais costumes e tradições chinesas vão encaixar-se na linguagem pop global e surgir em rádios, TVs, palcos ou I-phones em São Paulo, Londres, Cochabamba e Santa Rita do Passa Quatro? Peguei o telefone de Caxambu, ele anotou o meu. Tive de soletrar A-N-T-O-N-I-O: nunca tinha ouvido. Brasil também não lhe dizia nada. Até que improvisei um drible, disse ''football, soccer, Brazil'' e Caxambu abriu um sorriso. ''Lonaldô! Lonaldô!'', repetiu, feliz por termos, enfim, estabelecido alguma comunicação. Apontou, então, para um freezer e, ao ver o display de Ronaldinho Gaúcho - com olhos um pouco puxados, achei - chupando um picolé (de chá verde?), percebi que a China não era assim tão distante. Ou, melhor dizendo: que a pororoca já começou.

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