Patrimônio letrado

Em Portugal, a expansão marítima é mais que um dado histórico. Sua influência se espalha pelo cotidiano nacional na forma de monumentos, museus e até nomes de ruas

PUBLICIDADE

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

“Tudo vale a pena se a alma não é pequena.” Versos que ficaram tão batidos que há quem os recite sem ter noção de onde saíram. Ditos fora de contexto, servem a tantos propósitos que muitas vezes se esquece de que estão ligados à expansão marítima de Portugal. O trecho é parte de Mar Português, um dos poemas de Mensagem, livro épico de Fernando Pessoa que trata dos Descobrimentos. Estão lá muitos dos nomes com que você irá se deparar durante a viagem.

PUBLICIDADE

Imponente na ponta do barco desenhado pelo Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, o Infante D. Henrique é um deles. O Navegador, como é conhecido por personificar a expansão portuguesa, segura uma caravela, à frente de outras 32 figuras. Ali, também há salas de exposições e um mirante. A 50 metros de altura, tem-se um panorama do bairro de Belém com o Mosteiro dos Jerônimos no horizonte. O Padrão dos Descobrimentos foi inaugurado em 1960, nos 500 anos da morte do Infante D. Henrique.

O Navegador teria nascido no Porto, no norte do país. Embora não haja na cidade um lugar que conte a vida do nobre – a Casa do Infante é um museu que trata da antiga alfândega instalada ali e da ocupação da área ribeirinha –, ele batiza espaços públicos e tem a ver com o apelido dado aos nascidos ali: tripeiros. Os habitantes do Porto teriam dado à tripulação que partiu para a conquista de Ceuta, em 1415, todo seu suprimento de carne, ficando só com as tripas. Daí a origem do prato típico, tripas à moda do Porto.

Em Portugal é assim: a expansão marítima não é só uma fase da história, está entranhada na vida do país. Daquele tempo vem boa parte do patrimônio histórico, cultural e arquitetônico visto hoje. Por isso, mesmo a quilômetros do mar é possível se deparar com a lembrança dos Descobrimentos. Quase na fronteira com a Espanha, Belmonte soa familiar aos brasileiros. Ali nasceu Pedro Álvares Cabral, cuja estátua recebe os visitantes no Largo Antônio José de Almeida. Por fotografias, textos e vídeos, o Museu dos Descobrimentos – À Descoberta do Novo Mundo aborda a viagem do navegador e o desenrolar da história do Brasil. Onde fica? Na Rua Pedro Álvares Cabral, no Solar dos Cabrais, ora pois.

Uma caminhada leva ao Castelo de Belmonte, erguido nos séculos 12 e 13. A construção militar passou a ser a residência da família Cabral no século 15, até sofrer um incêndio no fim do século 17. Na janela da muralha, veem-se o escudo dos Cabrais e a esfera armilar, instrumento aplicado à navegação que se tornou símbolo de D. Manuel I, em cujo reinado a expansão marítima de Portugal viu seu auge. Além dos vestígios históricos, o vão descortina o vale do Rio Zêzere, na Serra da Estrela. A janela do Castelo de Belmonte é um exemplo de estilo manuelino. Desenvolvido no reinado de D. Manuel I (daí seu nome). No Mosteiro da Batalha, a 110 quilômetros de Lisboa, o portal das Capelas Imperfeitas parece ter sido bordado, tamanha a riqueza de detalhes.

Entretanto, a mais emblemática mostra do estilo fica a cerca de 140 quilômetros da capital portuguesa, em Tomar: a janela da Sala do Capítulo, no Convento de Cristo. Dê a volta na igreja e desça a escadaria para tirar uma foto ao lado dessa representação do feito épico das navegações, com vegetação alusiva ao mar, a esfera armilar e a Cruz de Cristo. Na construção, veja a Charola, oratório dos templários (século 12). Assim como o Mosteiro da Batalha, o complexo em Tomar é Patrimônio da Unesco.

Ponto de partida.

Publicidade

Conhecido por O Venturoso ou O Bem-Aventurado, D. Manuel I viu Portugal alcançar em seu reinado o caminho marítimo para o Oriente e descobrir o Brasil. Essas realizações e as riquezas provenientes delas renderam monumentos por todo país. Mas é no bairro de Belém, em Lisboa, que protagonistas, história e patrimônio arquitetônico melhor se reúnem. Nos séculos 15 e 16, dali partiam naus e caravelas para explorar os oceanos. D. Manuel I mandou erguer o Mosteiro dos Jerônimos, no lugar da antiga capela de Santa Maria, e a Torre de Belém, à beira do rio. Considerados Patrimônios da Unesco, os dois são os mais importantes representantes do estilo manuelino.

Visitar a igreja e o claustro do mosteiro é impactante. O feixe através da pequena janela dá uma iluminação quase mística ao túmulo de Luís de Camões. O escritor que narrou a realização de Vasco da Gama em Os Lusíadas encontra o navegador no mosteiro de D. Manuel I. O túmulo de Vasco da Gama fica no lado oposto ao do poeta. Desse ambiente escuro, o caminho segue para o claustro, onde a explosão de luminosidade realça o ápice do estilo manuelino, com elementos marinhos e a Cruz de Cristo. Um modo inspirado de encerrar o passeio é passar pelo túmulo de Fernando Pessoa para ler trechos de poemas de seus heterônimos.

Já na Torre de Belém, a caminhada inclui o baluarte, o paiol e as salas do Governador, dos Reis e de Audiências. A vista a partir do terraço da torre e ao longo da ponte dá boas fotos com as embarcações no Tejo – cai bem uma volta de barco pelo rio (de abril a outubro). O roteiro vai de Belém ao Parque das Nações, área que se transformou em um bairro moderno, onde se destacam a Torre Vasco da Gama, o teleférico sobre o rio e o excelente Oceanário.

PUBLICIDADE

Não apenas eventos e pontos turísticos refletem essa sintonia com o mar, mas também aspectos do idioma. De acordo com o linguista Ataliba Teixeira de Castilho, diversas expressões herdadas de Portugal que usamos são derivadas da navegação. “Por exemplo, quando algo vai bem dizemos que vai de vento em popa”, cita o assessor linguístico do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. “A língua reflete muito o uso social, a atividade que mais se destaca influencia a fala.”

A expansão marítima portuguesa deixou heranças muito além do Brasil. Nas antigas colônias africanas, na Índia e até em Macau os laços estão no idioma, na gastronomia, na arquitetura. Diante de tamanha ligação histórica, como discordar de Fernando Pessoa em seu Mar Português? “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!”

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.