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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

Pode tirar uma foto minha, por favor?

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Por Gilberto Amendola
Atualização:
Cena do filme 'Para Roma com Amor', de Woody Allen. Mas poderia ser o tal noivo. Foto: Sony Pictures Classics

Não é preciso falar inglês. Basta mostrar o celular e repetir “

please

”. A outra pessoa vai, naturalmente, entender o que você está sugerindo: “Pode tirar uma foto minha, por favor?” Daí é só relaxar, sorrir e mandar um “

oh, thank you

” quando o celular voltar às suas mãos. 

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Eu, que quase sempre viajo sozinho, tenho um álbum inteiro produzido por fotógrafos mundialmente anônimos e... aleatórios.

Hum, aleatórios? Acho que nem tanto. Escolher um estranho para “bater uma foto” (ainda se usa “bater”?) é rodar a roleta subjetiva dos nossos preconceitos mais subterrâneos. Essa tal roleta, percebam, costuma ser viciada em repetir padrões caricaturáveis, como o japonês sorridente com cara de fotógrafo vocacionado ou o jovem ocidental com jeitão de publicitário mochileiro branco que largou o emprego para ser feliz na Europa. 

Mas a coluna de hoje não quer problematizar a viagem de ninguém. A coluna de hoje é sobre o dia em que um sujeito de terno me abordou ofegante com um iPhone nas mãos, nas escadarias da Piazza di Spagna, em Roma. 

“Please, escusa.”

Não tive tempo de alertá-lo sobre minha falta de aptidão estética. O homem jogou o celular em minha direção e correu para junto de uma mulher. Ajoelhou-se na frente dela e, em italiano, disse algo como “casa comigo?”. 

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O homem congelou na frente da garota. Postado feito estátua, com um sorriso de falso brilhante no rosto e uma caixinha cinza nas mãos claudicantes de medo. Percebi que ele olhava pra mim como quem diz “vai, pazzo, anda logo com isso!”. 

Vi o rosto da mulher pela tela do iPhone. Cliquei. O homem me perguntou alguma coisa e eu respondi “aspetta”. Foquei no rosto da mulher outra vez. Cliquei. Mudei para a testa enrugada e suarenta do sujeito. Cliquei. Mirei o céu de Roma. Cliquei. Meu dedo na lente da câmera. Cliquei. Voltei para o rosto da mulher e vi ali, misturado com tanta beleza, um traço qualquer de tristeza. Cliquei. Cliquei e cliquei.

O homem suarento me chamou de um jeito um tanto rude. Fingi não entender. Uma pequena multidão se reuniu para ouvir o “sì” da mulher mais bonita que eu... 

“Francesca, che cos'è?”

Francesca chorava. As pessoas aplaudiam. Eu fotografava o rosto dela e mais nada – esquecendo completamente aquele apêndice sem nome que, ainda de joelhos, segurava uma aliança. 

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Quem quer ser um homem seboso de joelhos? Eu, naquele momento, queria ser o homem seboso, o apêndice sem nome, o amante de Francesca, o sem noção que estava protagonizando aquela cena patética. Cliquei. Foco no rosto dela, na expectativa que ela repetisse uma negação linda e redonda em seu idioma de origem. E que, em consequência disso, corresse para os braços do turista misterioso, do Cartier-Bresson de ocasião, que corresse para mim, que juntos... 

Mas ela disse sim. 

Cliquei.

Os curiosos gritavam em flagrante deleite. Ela seria mais feliz comigo – pensei sem nenhuma convicção. Devolvi o celular ao sortudo seboso e me afastei, degrau por degrau.

O céu escureceu. Parei na frente de um pequeno restaurante árabe. Comprei um kebab de cordeiro e comecei a comer na rua. Passou um menino de bicicleta. Coloquei a roleta dos meus preconceitos para rodar e pedi para que ele tirasse uma foto minha. Uma foto besta. Eu comendo um kebab, na frente de um restaurante árabe. Sem descer da bicicleta, o menino pegou meu celular, apontou a tela em minha direção e fugiu. 

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Não gritei. Antes que eu terminasse de comer, começou a chover. Molhou meu Kebab. Pensei em Francesca.

 

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