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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

São Paulo desce a Rebouças de bike

Entre pedaladas sob a chuva e encomendas curiosas, a rotina de um bikeboy pelas ruas da cidade

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Por Gilberto Amendola
Atualização:
São Paulo corre para entregar uma misteriosa encomenda Foto: Divasca

No gás, São Paulo desce a Rebouças de bike. Ele passa como um vulto magro na avenida, uma flechinha. Dessa vez vai ser o quê? Pizza? 

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Toma uma buzinada na orelha antes de virar na Henrique Schaumann. Faz um gesto obsceno e respira fundo. Quando chega no pico encontra os manos de correria: o Paraíba, o Alemão, o Ceará, o Haiti e o Bolívia.

– Fica de boa, São Paulo. O restaurante tá enrolado e ainda vai demorar uma cara para sair o pedido – disse um deles. E enquanto o japonês não fica pronto (não, não era pizza), os entregadores de aplicativo fumam, trocam ideias e contam histórias sobre acidentes de trânsito, clientes irritados e aventuras sexuais que nunca aconteceram. 

O tempo começa a fechar. Nessa época do ano é sempre assim. São Paulo nunca viu uma garoa. Acha que é lenda. Invenção de gente velha. Pra ele, só existe temporal.

Aos poucos, seus parceiros vão saindo com seus combinados de sushi, sashimi e temakis de salmão. Quando o Bolívia retira o pacote dele, São Paulo fica sozinho. E ficar sozinho é chato. Impaciente, e tentando fazer a entrega antes da chuva, entra no restaurante.

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– Tio, tem algum problema com o meu pedido?

O homem vai conferir no sistema que pedido era aquele. Ele chama outro funcionário para checar algo que São Paulo não consegue entender. Só falta ter dado algum pau no computador. Os homens se entreolham misteriosamente. Um deles sai em direção à cozinha ou ao almoxarifado. Lá fora já está chovendo. O cliente deve estar louco. O homem volta com um pacote.

– Muito cuidado com isso, menino.

São Paulo fica intrigado com aquele “muito cuidado”. Afinal, é só peixe cru, não e?

Antes de colocar o pacote na bag vermelha, pensa ouvir um barulho. Bomba? Não, não é um tique-taque. O som está mais para um tum-tum-tum. Tipo um coração. Tipo um coração, mano.

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A chuva começou. O cliente já mandou uma mensagem perguntando sobre o pedido. São Paulo pedala. Acelera na tempestade. Mas vacila e não percebe um buraco na via. Sente o guidão tremer, a bike sacudir e só não se esborracha no chão porque é pró. O ônibus também tira uma fina. Lembra da mãe e da mina. E quase faz um rap.

Ele acha que ouviu um coração dentro da bag. “Maluco, quem pede um coração pelo aplicativo?”

Sem conseguir responder a própria pergunta, começa a fantasiar sobre um transplante de emergência e sobre médicos ao redor do paciente que pediu um coração pelo aplicativo de entrega do celular.

Chega na rua indicada e procura o número. Cadê o prédio? Cadê? A chuva castiga São Paulo (a cidade e o menino). Depois de quase um minuto, ensopado, transtornado, encontra o que estava procurando.

Ele desce da bike, tira o pacote da bag (com cuidado) e corre para a portaria.

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O porteiro, sem se abalar, pede para São Paulo colocar o pacote em uma portinhola e se mandar.

– O senhor não entende, é urgente. – O morador já foi informado que a encomenda chegou. Já já ele desce. – Mas... – Não tem mas. Você coloca o pacote aqui é vaza. – E se ele morrer? – De fome? Duvido. Agora, vaza, vaza...

São Paulo desiste de discutir. O problema não é mais dele. O coração ou seja lá o que for já está entregue. O porteiro é que se entenda com a viúva (se é que tem uma viúva). Dez minutos depois, São Paulo recebe o aviso de caixinha: o cliente deu R$ 5.

São Paulo se sente condecorado. Um herói anônimo dessa cidade que um dia lhe emprestou o apelido. 

A chuva acalma. O menino volta a ser como um vulto magro na avenida, uma flechinha indo salvar a vida de alguém.

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