Quem tiver sorte, talvez o veja. A seguir, a pergunta da semana:
Querido Mr. Miles: meus pais sempre acalentaram o sonho de viajar para a Europa pelo menos uma vez na vida. Agora, ambos com mais de 65 anos, finalmente foram até lá para visitar Portugal (minha mãe é devota de Nossa Senhora de Fátima), Espanha, França e Itália. Para minha surpresa, logo após sua chegada ao Velho Mundo, minha mãe começou a me enviar e-mails chorosos, cheios de saudades, dizendo-se arrependida de ter saído do Brasil. Isso é normal? O que devo dizer para animá-la? Natasha Soares Tonini, por e-mail
“Well, my dear, sinto muito por sua mãe que, however, ao final, trará boas recordações e histórias dessa jornada que, por enquanto, parece um calvário. Pessoas que levam muito tempo para deixar o país pela primeira vez costumam sofrer uma espécie de Síndrome do Ninho Abandonado, assim batizada pelo Tratado Geral de Viajologia, Sintomas e Reações, segundo volume da caudalosa obra do professor Max. L. Störme, intelectual da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Trata-se de um compêndio que eu não recomendo a ninguém, em razão de sua linguagem rebuscada e de seus raciocínios tortuosos.
O emérito pensador acerta, however, quando define a completa insegurança que acomete alguns peregrinos que, tarde demais, experimentam as transformações inerentes à experiência de viajar. De acordo com ele, a ausência de referências cotidianas – vizinhos, filhos, alimentos, idioma e até o telefone do eletricista – provoca, nessas pessoas, uma angústia que supera e obnubila o prazer da descoberta e a realização do sonho. Segundo as estatísticas do professor alemão que, para dificultar even more, escreve em gótico, cerca de 8,73% dos viajantes na condição de sua progenitora apresentam os seguintes sintomas:
1. Pavor instantâneo: no exato momento do desembarque, antes mesmo da imigração, o paciente (agora na linguagem de Störme) é acometido por uma ligeira vertigem. Assomam-lhe as lágrimas e a pergunta fatal: ‘O que é que eu estou fazendo aqui?’.
2. Sensação de história encerrada: segue-se a constatação de que tudo o que o paciente mais prezou em sua vida – filhos, netos, jogos de buraco e a novela das nove – ficou irremediavelmente perdido no passado, como se os quilômetros percorridos a bordo do avião fossem anos que não voltam mais.
3. Patriotismo inexplicável: de um momento para o outro, tudo o que lhe é apresentado parece, por consequência, muito pior do que em seu país de origem. As ruas são mais estreitas, as pessoas mais mal-educadas, as camas mais malfeitas e a comida, well, a comida é, definitely, um horror.
Eis por que, darling, uma notável porcentagem dos turistas de primeira viagem já está, no segundo dia de roteiro, à caça de um restaurante brasileiro. E, se ouve no rádio do táxi aquela obra-prima de Michel Teló (‘delicious, delicious…’) põe-se a chorar de uma nostalgia incontrolável.
Para ‘pacientes’ brasileiros, by the way, não há decepção que se compare à constatação de que nem mesmo os melhores pratos da cozinha local vêm acompanhados de arroz e feijão. É o golpe definitivo.
A boa notícia, dear Natasha, é que mesmo torturada pelas sensações acima descritas, a alma humana é sempre capaz de capturar o belo e o novo. Um jardim florido, o aroma da primavera, o sabor de um doce e o espanto das atrações que surgirão pelo caminho terão o condão de penetrar a carapaça de aparente sofrimento e, ao fim e ao cabo, são elas que formarão a memória da viagem.
Believe me, darling: ao voltar ao Brasil e recuperar tudo aquilo que parecia irremediavelmente perdido, sua mãe trará lembranças formidáveis. Os sintomas surgidos no início da viagem terão desaparecido e nunca serão mais do que passagens engraçadas, quando relembrados nas rodas de conversa.
A seletividade da memória – tema de outro capítulo do Tratado de Störme – vai se encarregar de acabar com o arrependimento. E, não duvide: em poucos dias sua mãe estará acalentando o sonho de uma nova viagem. Que, essa sim, será ainda muito melhor.”
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