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Tempo livre e felicidade

Lugares e memórias revivem a Revolução Russa de 1917

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Por Bruna Toni
Atualização:
Mas o que queremos, no fundo, que não mais tempo livre e felicidade? Foto: Bruna Toni/Estadão

Há quase uma década, dois amigos e eu decidimos presentear um colega de faculdade com algo que representasse dois desejos que compartilhávamos com ele na época – e que ainda carrego. Escolhemos um livro e um par de chinelos para simbolizar nosso jeito de lutar conjuntamente por um mundo diferente. Sim, queríamos livros e chinelos para todas e todos. Ou, traduzindo para a frase mais significativa que já ouvi, dita por um trabalhador, queríamos mais tempo livre e felicidade. 

Nunca outra definição me soou tão certeira para descrever tal ideal. Lembro dela com frequência, e, a oito dias de a Revolução Russa completar cem anos, em 25 de outubro, com ainda mais intensidade. Mas, pode se perguntar o leitor, o que este evento e as viagens têm em comum? 

Escrevi, certa vez, que viajar é encontrar pessoas, encontrar ideias, afirmação que se prova mais verdadeira quanto mais viajo. E quanto mais viajo, mais me torno capaz de abandonar antigas cascas de preconceitos e conceitos para, em seguida, vestir-me do novo.

O novo que reinventa. O mesmo novo que apontava um outro caminho às milhares de pessoas que, naquele outono russo de 1917, saíram às ruas, derrubaram o governo czarista e ajudaram a construir a primeira experiência socialista mundial. Viajar e fazer revoluções são atos bem diferentes, claro. Mas ambos são capazes de transformar.

O que a Revolução de Outubro sempre me ensinou – independentemente de posições políticas – e o que o caminhar pelo mundo anda reforçando, além do mais, é que o companheirismo sobrevive, apesar dos pesares, nas situações mais controversas. Sua força nos “ressuscita”, para citar Maiakovski, o poeta da Revolução.

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 Entre as amizades da vida universitária, ganhei a de uma companheira que hoje vive no México. Foi dela o relato mais comovente que li sobre a devastação que o terremoto de 20 de setembro causou na capital do país; comovente sobretudo pelas histórias de solidariedade entre os mexicanos, unidos para tentar salvar o maior número de pessoas e auxiliar os desabrigados. Uma forma de compensar, ela afirmava, a atuação insuficiente do governo. 

Solidariedade também foi o que senti, em outro contexto, na primeira vez que estive na Flórida, nos EUA. Estava num outlet e encontrei um vendedor marroquino. Eu queria saber o preço da camisa que ele vendia. Assim que ele viu no meu braço uma tatuagem com as palavras “justiça” e “liberdade” em árabe, nosso assunto mudou. 

Ao saber que o motivo do rabisco era não a ascendência, mas a fé num futuro diferente para o Oriente Médio e, consequentemente, para todo o mundo, ele respondeu “obrigado por isso”. Eu sorri. Não levei a camisa, mas trouxe algo, sem dúvida, maior. 

Há uma coleção de histórias de solidariedade e trocas que surgem a cada vez que ousamos ter tempo livre para calçar um par de chinelos, ou para escolher um novo livro para ser apreciado. Desafiamos a ordem quando percebemos que cabemos em outro tipo de sociedade. Mais livre, gentil, mais feliz. Em tempos de tanta incerteza sobre o futuro, tudo isso parece fazer mais sentido. 

A Revolução Russa está materialmente espalhada pelo mundo também, inclusive em pontos turísticos, seja por causa das trajetórias de seus personagens, seja pelos eventos influenciados e/ou decorrentes de seus anos posteriores.

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Na Rússia, é claro, cada construção e esquina pode trazer um momento dessa história à tona – da Praça Vermelha e do Mausoléu de Lenin às estações de metrô e arranha-céus peculiares, construídos no regime soviético – a Copa do Mundo do país, em junho do ano que vem, deve levar mais turistas a todos essas paradas, aliás. 

No Leste Europeu, alguns países mantêm espaços que lembram protagonistas (e também as dores) que os anos stalinistas causaram. Em Budapeste, na Hungria, a Casa do Terror reconta os anos de domínio e repressão fascista e stalinista no país. 

Já no México, além da solidariedade encontrada por minha amiga, a Casa Museu de Leon Trotsky refaz em imagens, escritos, cômodos e mobília os últimos passos do líder do Exército Vermelho e da própria Revolução.

Lugares e memória, assim, recriam os caminhos da história e nos fazem reviver sentimentos e sonhos. Como aquele, de ter mais tempo livre e ser feliz – para mim e meus amigos, um ato de rebeldia ainda hoje. Como aquele, de viajar e estar aberto ao mundo e às suas mudanças. Mesmo cem anos depois. 

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