Um ano sem viagens

Como destinos dependentes do turismo se adaptaram ao longo de um ano de restrições no turismo?

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Por Redação
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Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou que o surto de coronavírus havia atingido o nível de pandemia, com “índices alarmantes de propagação e gravidade”. Quase imediatamente, as viagens internacionais cessaram à medida que países fechavam suas fronteiras, companhias aéreas cancelavam voos e cidades do mundo inteiro entravam em lockdown. As perdas em vidas, em saúde e em meios de subsistência continuaram aumentando.

Skagway, no Alaska, é um importante porto de cruzeiros; com a pandemia, a cidade ficou deserta Foto: Christopher Miller/NYT

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Para a indústria de viagens e todos que dependem dela, o golpe foi acachapante: as chegadas internacionais nos aeroportos dos Estados Unidos caíram 98% em abril de 2020 em comparação com o ano anterior e permaneceram nesse nível por meses. De acordo com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, espera-se que a economia global do turismo encolha cerca de 80% quando estiverem disponíveis todos os dados para 2020. Examinamos lugares de todo o mundo que dependem fortemente do turismo para ver como eles se adaptaram.

St. Croix, Ilhas Virgens, Estados Unidos

Os cavalos ainda precisam comer

Jennifer Olah mal havia assinado a escritura de uma fazenda de 8 mil metros quadrados, o novo lar para sua organização sem fins lucrativos na extremidade oeste de St. Croix, quando a covid-19 apareceu. A Cruzan Cowgirls começou em 2013 para resgatar e reabilitar cavalos da ilha e educar os jovens locais sobre os animais. Olah contava com voluntários para cuidar dos cavalos e com visitantes internacionais para pagar as contas. Os passeios a cavalo ao longo da Rainbow Beach e pela floresta tropical da ilha, com duração de cerca de 1h30 cada, rendiam cerca de US$ 100 por cavaleiro, sem gorjeta.

Olah proporcionava passeios para cerca de 25 pessoas por semana. Depois que as ordens de quarentena foram emitidas em 23 de março de 2020, todos os negócios não essenciais de St. Croix se viram obrigados a fechar e as chegadas de navios de cruzeiro se interromperam. A base de clientes de Olah secou durante a estação mais movimentada do ano. “Fomos obrigados a fechar em março, mas nossos cavalos ainda precisavam de cuidados”, disse ela sobre seu estábulo de 25 cavalos. “Tínhamos que descobrir como cuidar da nossa família”.

St. Croix é uma das três principais ilhas que compõem as Ilhas Virgens, arquipélago no Mar do Caribe e território dos Estados Unidos que depende muito do setor de viagens e turismo para impulsionar sua economia. Geralmente, o turismo representa 60% do seu produto interno bruto, mas, em 2020, o número de visitantes nas Ilhas Virgens despencou mais de 60% em comparação com 2019, caindo de mais de US$ 2 milhões para pouco mais de US$ 800 mil em 2020 (excluindo dezembro). Em St. Croix, isso significou a duplicação do desemprego na ilha, o aumento de pequenos furtos e o fechamento de muitos negócios – alguns por até dez meses.

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Para a Cowgirls Cruzan, surgiram preocupações com tudo, desde a comida até os assaltos. “Comprar ração é muito caro aqui, porque todas as nossas rações precisam ser trazidas de outras ilhas”, disse Olah. Isso também vale para os veterinários: sem médicos para equinos na ilha, Olah precisa trazer um profissional de avião do continente quando um cavalo adoece ou precisa de cuidados. A alimentação e a atenção médica adequadas podem chegar facilmente a US$ 500 por cavalo por mês. Como ela não tinha funcionários regulares, Olah não teve direito a empréstimos por meio do Programa de Proteção às Folhas de Pagamento.

Para aguentar o período de paralisação, ela realizou várias campanhas de arrecadação de fundos online, explicando sua situação no Facebook e em outras redes sociais. “Mandamos mensagem de texto para todos os cavaleiros que passearam conosco nos últimos oito anos e pedimos que eles doassem ou comprassem um vale-presente para um passeio que poderiam usar assim que as restrições da covid fossem suspensas”, disse ela. Seus esforços levantaram dinheiro suficiente para fazê-la passar pela fase difícil de março.

Roubos periódicos também preocuparam Olah. “Toda a nossa ração para cavalos foi roubada uns meses atrás. Em outra ocasião, roubaram nosso gerador, todas as nossas rédeas foram roubadas duas vezes, além de um par de selas e almofadas de sela”, disse ela. “Alguém pegou até algumas galinhas e patos."

Jennifer Olah contava com os visitantes internacionais de St. Croix para pagar as contas da ONG dela, que cuida de cavalos Foto: Meredith Zimmerman/NYT

Apesar dos desafios, ela está animada. Olah começou a ver uma recuperação no turismo. A ilha está aberta novamente, com os voos aumentando nos últimos meses. Alguns dos restaurantes mais populares da ilha já têm fila de espera. “Quase não sobrevivemos até aqui e ainda estamos recuperando o tempo perdido”, disse ela, observando que os passeios recomeçaram, embora os números ainda sejam menores do que antes da pandemia: 15 cavaleiros por semana, em média, em comparação com os 25 de antes.

“Acho que a vacinação deu a algumas pessoas a confiança de que podem começar a se movimentar”, disse Olah. “Recebemos visitas de muitos profissionais de saúde recentemente. Ontem, fiz um passeio com quatro enfermeiras”.  (Por Charu Suri)

Aeroporto Changi, Cingapura

Esperando passageiros que não vêm

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Numa recente manhã de quinta-feira no Aeroporto Changi de Cingapura, seis pessoas digitavam em seus laptops, bem acomodadas em cadeiras de veludo no Changi Lounge. Colado em todas as outras cadeiras, um adesivo exortava as pessoas a deixá-las vazias, lembrando-as de que “manter distância mantém todos seguros”. O bufê de bebidas e lanches desapareceu. Em vez disso, garçons traziam croissants e café.

Alyss Leow, executiva de recursos humanos de 36 anos, trabalha no lounge a cada duas ou três semanas. Ela pagou US$ 200 por um período de três meses. “Tem dias que não quero trabalhar em casa e este é o lugar ideal”, disse Leow. “Dá aquele tipo de pausa psicológica de que você precisa”. Dois anos atrás, o Aeroporto Changi de Cingapura estava em alta. Abrira um elegante complexo de compras e entretenimento de US$ 1,3 bilhão, com cinema e a cachoeira interna mais alta do mundo. Foi eleito o melhor aeroporto do mundo pelo sétimo ano consecutivo. Exagerado e instantaneamente icônico, Changi movimentou um recorde de 63,8 milhões de passageiros em 2019.

Então, quando a covid-19 se espalhou pelo mundo, o tráfego de passageiros em Changi despencou quase 83% no ano passado. O lucro líquido do aeroporto caiu 36%, para cerca de US$ 327 milhões. Suspendeu-se a construção de um quinto terminal. Em janeiro de 2020, 33 mil voos decolaram de Changi. O número caiu para 7.500 em janeiro deste ano. Para lidar com a desaceleração, o aeroporto decidiu se concentrar em seu único mercado: os residentes de Cingapura.

Mesmo antes da covid, muitos locais se aglomeravam no aeroporto para comer, fazer compras e estudar. Adaptando-se à pandemia, os executivos do aeroporto ofereceram oportunidades de glamping e karting e converteram o Changi Lounge num espaço de coworking. Convidaram pais a trazerem seus filhos para festas do pijama e passeios educacionais. Por ser um aeroporto que conta apenas com o mercado internacional, dizem os analistas, Changi terá mais dificuldades do que a maioria de seus pares para se recuperar da pandemia.

O Aeroporto de Cingapura, que ganhou shopping e complexo de entretenimento em 2019, teve queda de 83% em passageiros no ano passado Foto: Lauryn Ishak/NYT

A pausa levou o aeroporto a repensar seu papel num mundo pós-covid. Ele sempre foi um destino em si, mas a pandemia lhe deu motivos para lançar uma experiência mais ambiciosa: será que o aeroporto conseguiria atrair as pessoas para ficar mais tempo? Os executivos do aeroporto começaram a pensar em como os cingapurianos sedentos por viagens poderiam vivenciar o Jewel, o megacomplexo de compras, “de uma maneira totalmente nova”, disse Jayson Goh, diretor administrativo da gestão de operações aeroportuárias do Changi.

A ideia de “glamping nas nuvens” colocou dez tendas numa praça vazia do aeroporto, de frente para a famosa cachoeira. Mas foi criticada por internautas que questionaram por que as pessoas gastariam pelo menos US$ 240 por noite para dormir num piso de concreto sem banheiro privativo (Havia camas queen-size). “É ridículo”, disse Jason Chua, advogado que tinha passado pelas tendas. “É como se eles fossem animais em jaulas e as pessoas passassem e olhassem para eles dormindo.” Mesmo assim, a promoção de um mês esgotou em 24 horas, disse Goh.

Goh disse que essas atividades foram “uma boa experiência” para o aeroporto, para ver se Changi, na parte leste de Cingapura, poderia ser um complemento para visitantes estrangeiros que decidem ficar na região leste. O aeroporto fica perto de Changi Village, lar de vários resorts e hotéis que são populares para passeios de fim de semana. Um dos saguões do aeroporto, o Changi Lounge, tinha como alvo passageiros que haviam voado para fazer cruzeiros. Agora, os executivos do aeroporto o estão promovendo como um “ambiente tranquilo para trabalhar”. Numa quinta-feira recente, só um punhado de viajantes, alguns vestidos com equipamento de proteção individual completo, se preparava para pegar voos no aeroporto. Vários funcionários entediados estavam digitando em seus telefones celulares, esperando passageiros que nunca apareceram.  (Por Sui-Lee Wee Paris)

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Paris, França

O mundo da culinária caiu com a pandemia

Em tempos normais, o restaurante Aux Lyonnais é o lugar certo para o clássico almoço de negócios parisiense. Perto da Bolsa de Valores de Paris e dos escritórios do jornal Le Figaro e da Agence France-Presse, este bistrô num edifício da década de 1890 todos os dias fica lotado de executivos, jornalistas e burocratas do governo, ávidos por comida à moda antiga de Lyon e gargalhadas.

Hoje em dia, a fachada vermelho-sangue do Aux Lyonnais parece a mesma, mas por dentro tudo está em silêncio. As mesas de carvalho com moldura de ferro estão nuas, sem seus arranjos, talheres e taças de vinho. Algumas das cadeiras do bistrô foram guardadas. O balcão de zinco foi polido. Os grandes espelhos chanfrados, as molduras brancas cremosas e os azulejos florais verde e rosa foram limpos, à espera do momento em que os restaurantes em Paris poderão reabrir.

Alain Ducasse, dono do Aux Lyonnais, parece um pouco perdido. Ao longo dos anos, o Michelin o cobriu de estrelas; os ricos e poderosos se aglomeraram em seus restaurantes na França e em todo o mundo. Entre 40% e 60% da clientela dos estabelecimentos de Ducasse em Paris – seu homônimo de três estrelas no Plaza Athénée, seu restaurante de duas estrelas no hotel Le Meurice, bem como Aux Lyonnais, Ducasse sur Seine, Rech, Benoit, Allard, Spoon e Cucina – eram de turistas. A pandemia fez seu mundo cair; na verdade, o mundo da culinária de toda a França.

Restaurantes e cafés de todo o país estão totalmente fechados; não há um roteiro para a reabertura. Assim como muitos outros chefs daqui, Ducasse, de 64 anos, voltou-se para a entrega (seja no delivery ou no esquema “clique e pegue”), mas não qualquer entrega. Ele converteu (temporariamente) o Aux Lyonnais em “naturaliste” e transformou a cozinha – que antes servia clássicos como quenelles com crème nantua e fígado de vitela com salsa e batatas – numa área de preparação para o que ele chama de comida “saudável”: sem carne, sal, açúcar nem laticínios e com peixes, soja, frutas e vegetais. A entrada custa entre 6 e 9 euros (cerca de R$ 39 a R$ 59), o prato principal de 12 a 14 euros (R$ 78 a R$ 92) e a sobremesa, 7 (R$ 45).

O renomado chef Alain Ducasse em seu bistrô parisiense Aux Lyonnais, que agora funciona apenas com delivery Foto: Joann Pai/NYT

Dezenas de caixas cheias de refeições a serem entregues se empilham (100 a 150 todos os dias) ao longo de uma parede do restaurante. “Eu gosto dos extremos”, disse ele. No momento, o esquema de entrega está mantendo o emprego de pelo menos alguns funcionários de Ducasse e até rendendo algum dinheiro. Mas jantar em Paris tem a ver com a comida, claro, e também com le partage, a experiência compartilhada de celebrar juntos num restaurante.

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“Na França, quando você reúne seis pessoas ao redor de uma mesa para uma boa refeição, começa um ritual”, disse Ducasse. “Você abre uma garrafa de champanhe. Aí discute o que vai comer. Aí faz o pedido e, quando a comida chega, você fala sobre o que está comendo. Depois, você fala sobre o que comeu. E, por fim, você fala sobre o que vai comer na próxima semana. As pessoas querem se socializar com uma garrafa de bom vinho, olhar para mulheres bonitas e bem vestidas, não só ficar na mesa da cozinha olhando para seus cônjuges. “Comer uma refeição entregue na sua cozinha não é vida”. (Elaine Sciolino)

Skagway, Alasca

Uma cidade de navios de cruzeiro sem cruzeiros

Normalmente, nesta época do ano, os moradores de Skagway começam a levar a sério o verão que se aproxima. Não é brincadeira, porque se você contar a temporada de maio a setembro, eles têm de ganhar todo o dinheiro do ano em cinco meses intensos. Num dia agitado de verão, 13 mil passageiros desembarcam de navios de cruzeiro para absorver a atmosfera desta cidade da era da corrida do ouro no sudeste do Alasca, cercada por geleiras, montanhas, fiordes profundos e a natureza selvagem da Floresta Nacional de Tongass.

Apesar de uma população de apenas mil pessoas durante todo o ano, antes da pandemia Skagway era o 18º porto de cruzeiros mais visitado do mundo, com US$ 160 milhões fluindo anualmente para sua economia. Para o verão de 2020, Skagway esperava 1,3 milhão de turistas para passear pela Broadway, sua principal rua de bares, hotéis históricos e lojas de souvenirs. É o tipo de cidade com tanto foco turístico que até o prefeito Andrew Cremata tem um emprego paralelo vendendo passeios no cais. A covid pegou Skagway, uma cidade próspera, movida a navios de cruzeiro, e a transformou numa cidade fantasma. Não houve visitas de navios de cruzeiro em 2020. E 2021 também parece sombrio.

Para piorar as coisas, a pandemia não apenas destruiu sua economia, como também cortou a conexão terrestre de Skagway com o resto do mundo. A única estrada que sai da cidade leva à fronteira canadense, atualmente fechada, a cerca de 30 quilômetros de distância. Para evitar um êxodo em massa de moradores, a cidade teve uma ideia inusitada. Em vez de reservar fundos de estímulo da Lei CARES para operações municipais – como em qualquer outro lugar dos Estados Unidos –, as autoridades de Skagway decidiram redistribuir a maior parte do dinheiro aos residentes. 

Cada residente em tempo integral, independentemente da idade, recebeu US $ 1.000 mensais de junho a dezembro de 2020, com uma condição: eles tinham de gastar o dinheiro na cidade. Podia ser para pagar uma hipoteca, comprar mantimentos nas duas mercearias de Skagway, adquirir materiais de reforma na loja de ferragens local ou ajudar a locadora de DVD da cidade. Era necessário apresentar recibos provando que a compra fora feita ali. Para Cremata e outras autoridades locais como Jaime Bricker, presidente do Conselho Tradicional de Skagway, a justificativa era simples: garantir a sobrevivência da cidade até que os turistas voltassem.

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Outros programas estabelecidos por eles incluíram distribuição de vacinas, testagem de coronavírus, pagamento do seguro médico-hospitalar dos residentes, bem como ajuda ao banco de alimentos da cidade e às escolas. “Um ano atrás, nós tínhamos um objetivo: atravessar até a temporada de 21”, disse o prefeito. “Tivemos muito sucesso. Vamos chegar à temporada de 21”. Ele fez uma pausa. “Então, agora, temos que estabelecer uma nova meta”.

Cremata estava se referindo ao fato de que, em 4 de fevereiro, o governo do Canadá estendeu a proibição de navios de cruzeiro em suas águas territoriais até 28 de fevereiro de 2022. Esta decisão cancelou efetivamente a temporada de verão de 2021 de Skagway. O prefeito diz que as circunstâncias suscitaram entre os moradores questionamentos sobre o turismo e o futuro de Skagway. “O que é bom para Skagway? É saudável trabalhar 70 horas por semana quando seus filhos estão fora da escola? Ou é mais saudável ter uma economia um pouco mais sustentável, não apenas do ponto de vista econômico, mas do ponto de vista pessoal?”, disse Cremata.

“As pessoas falavam: não vou à Broadway, não vou nem ao centro quando os navios de cruzeiro estão aqui”. Cremata riu. “Sempre há uma dicotomia em Skagway. Por mais que as pessoas possam reclamar de ir à Broadway, as pessoas adoram turistas aqui. E eu também”. (Peter Kujawinski, escritor que mora em Chicago, é ex-diplomata dos Estados Unidos e coautor de cinco livros).

Hoi an, Vietnã

Voltando ao mar para sobreviver

Com um misto de angústia e esperança, Le Van Hung saiu de sua casa envelhecida sob os coqueiros na costa central do Vietnã e, no meio de galinhas cacarejantes, subiu o curto caminho de areia para ver as ondas, o céu, o sol. O mar calmo significava que, depois de meses de tempo tempestuoso, ele poderia remar com segurança seu barco de cesto no Mar da China Meridional para pescar peixes e caranguejos e assim sustentar a família. Hung, de 51 anos, foi pescador de águas profundas por muitos anos, em barcos maiores. Mas, em 2019, ele desistiu e começou a ajudar sua filha a administrar o restaurante à beira-mar que abriram em 2017 em Hoi An, um antigo porto histórico, aproveitando o crescimento do turismo internacional na cidade, impulsionado por viajantes ocidentais e pacotes turísticos asiáticos.

Os turistas e a maior parte da renda da família desapareceram quando o coronavírus atacou no início de 2020 e, num golpe especialmente cruel, uma monção arrastou seu restaurante Yang Yang para o fundo do mar, em novembro. Agora, assim como muitos outros em Hoi An que pararam de pescar para trabalhar no turismo como garçons, seguranças ou barqueiros, ou então abrir seus próprios negócios atendendo viajantes, ele voltou ao que sabe fazer de melhor: navegar sobre as ondas para ganhar a vida.

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Hung, homem baixo com barriga pronunciada e dores nas costas, sustenta seis parentes que moram com ele em poucos quartos, sob um telhado de telhas de barro e janelas venezianas de madeira. Eles mal estão conseguindo sobreviver. Desde setembro, tempestades violentas e, mais recentemente, ventos fortes e mar agitado, mantiveram Hung longe das águas, com medo de que seu barco, que é do tamanho de uma banheira de hidromassagem, virasse.

Olhando para as ondas no final de fevereiro, com metade do banheiro de tijolos de seu antigo restaurante ainda na praia cheia de entulho, ele disse a si mesmo: “depois de amanhã, o mar vai estar seguro. Então, ao nascer do sol de uma terça-feira, Hung estava em seu barco, remando para superar espumantes ondas de um metro de altura. A cerca de 400 metros da costa, em ondulantes águas azul-marinho, ele começou a desenrolar uma rede de pesca transparente. Escorrendo do barco à medida que ele remava, a rede criou uma tela de dois metros de profundidade e mais de 500 metros de extensão, pronta para capturar cardumes de peixes.

Hung cresceu em Hoi An, que durante séculos foi uma comunidade de pescadores encravada entre o mar turquesa e os campos de arroz esmeralda. Sua atmosfera de cidade antiga está repleta de estalagens chinesas de madeira e casas coloniais francesas cor de mostarda. Nos últimos quinze anos, incorporadoras vietnamitas e hotéis internacionais investiram bilhões de dólares na construção de resorts à beira-mar, e empreendedores locais e estrangeiros abriram centenas de pequenos hotéis, restaurantes e lojas no centro histórico da cidade e nos arredores. Turistas internacionais invadiram a cidade, lotando as praias durante o dia e a cidade velha à noite.

A pandemia bateu forte porque Hoi An ficara excessivamente dependente dos estrangeiros. Em 2019, 4 milhões de seus 5,35 milhões de visitantes eram do exterior. Em 2017, à medida que os hotéis pipocavam ao redor da casa de Hung na praia de Tan Thanh, perto da cidade velha, a família pediu dinheiro emprestado a parentes, comprou algumas dezenas de espreguiçadeiras e guarda-sóis de palha e ergueu um restaurante ao ar livre na duna atrás da casa. Sua filha, Hong Van, de 23 anos, preparava pratos de frutos do mar, como rolinhos primavera de camarão e lula. Seus dois filhos ajudavam a cozinhar e a servir as mesas, e ele lavava os pratos.

Hung abandonou completamente a pesca em alto mar no verão de 2019, convencido de que o turismo era seu passaporte para uma vida melhor. “Eu estava mais feliz”, disse Hung, que é viúvo, por meio de um intérprete. “Trabalhar em casa relaxa a cabeça, é confortável ter uma rotina com minha família”. Ele estava ganhando cinco vezes mais que os 3 milhões de dong, ou cerca de US$ 130, por mês que ganhava no mar. Mas as mesas do restaurante esvaziaram quando o coronavírus afetou o sudeste da Ásia, e o Vietnã impôs um lockdown nacional durante a maior parte de abril.

Então, o Vietnã sofreu seu segundo surto de covid-19 em julho, exatamente quando os moradores estavam começando a se sentir mais esperançosos com a recuperação do turismo doméstico. Tudo fechou de novo por semanas em Hoi An. Com suas economias quase esgotadas, Hung sabia que precisava voltar ao mar. Em agosto, ele já estava enfrentando as ondas, dominando seu barco redondo com um único remo. Sua filha vendia o excedente da pesca em sua página no Facebook. Mas o mar foi ficando mais arriscado à medida que a estação chuvosa de 2020 avançou para 2021.

Em seu barco, pescando num mar mais calmo, Hung vestiu luvas e uma capa de plástico e começou a puxar a rede, enrolando-a numa pilha. Devolveu ao mar um e outro filhote de água-viva, claro feito um cubo de gelo redondo, e depois de vinte minutos a rede de malha trouxe um peixe prateado de 12 centímetros e um minúsculo caranguejo. Quinze minutos depois, outro peixe pequeno. Como o mar estava mesquinho, Hung remou de volta para casa. Economizariam alguns centavos grelhando o peixe, ele disse consigo mesmo, em vez de fritá-lo e desperdiçar óleo. Ele sonha com pescarias fartas. “Temos esperança”, disse Hung, “mas nunca sei o que vai acontecer debaixo d’água”. (Patrick Scott, ex-editor de negócios do New York Times, mora na cidade de Ho Chi Minh, no Vietnã)

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No Vietnã, Le Van Hung voltou a ser pescador para sustentar a família, que vivia de restaurante na praia Foto: Rehahn C/NYT

Apollo bay, Austrália

“Empresas Zumbis” tentam sobreviver

Antes da pandemia, os turistas chineses fluíam de grandes ônibus para os restaurantes de Apollo Bay, uma pequena cidade litorânea ao longo da Great Ocean Road de Victoria, no sudeste da Austrália, uma parada popular nos passeios de um dia pela costa. Eles enchiam bares e restaurantes como o Apollo Surfcoast Chinese Restaurant, uma lanchonete de frente para a praia, preparada para atender de uma só vez quase duzentos clientes com vontade de sentir um gostinho de casa, mas com pressa. Agora, o restaurante está às moscas.

As imensas mesas e bancos de madeira, instalados na calçada pouco antes da chegada do coronavírus, estão desertos. Michelle Chen abriu o restaurante em 2012 depois de viajar pela Great Ocean Road e não encontrar nada para seu “estômago chinês”. Com os turistas chineses crescendo rapidamente na região, ela viu uma oportunidade imperdível que, até o ano passado, estava valendo a pena. A China ultrapassou a Nova Zelândia como o maior mercado turístico estrangeiro da Austrália em 2017.

No estado de Victoria, cuja capital é Melbourne, os visitantes chineses gastaram 3,4 bilhões de dólares australianos (US$ 2,6 bilhões) em 2019 (mais do que os dez mercados internacionais seguintes juntos) e representaram quase 40% de todos os gastos dos visitantes internacionais de fim de semana. Naquele mesmo ano, 45% dos visitantes chineses no estado visitaram a região da Great Ocean Road.

Esse boom da última década, impulsionado pela crescente classe média chinesa e pela proximidade com a Austrália, levou as empresas de turismo de Victoria e pequenas comunidades como Apollo Bay a se adaptarem, personalizando experiências, contratando funcionários que falam chinês e traduzindo menus e placas de parques nacionais. Mas, quando a Austrália proibiu voos da China, em 1º de fevereiro de 2020, e depois proibiu viagens internacionais em março, foi como se alguém tivesse fechado a torneira. “Quase 100% do meu negócio desapareceu”, disse Chen.

Exceto por algumas horas limitadas na época do Natal, o restaurante está fechado desde março. Fechamento rigoroso de fronteiras, lockdowns e quarentena obrigatórios permitiram que a Austrália suprimisse a covid-19 extraordinariamente bem, com um total de 909 mortes em uma população de 25 milhões de habitantes. Mas a Austrália pode continuar fechada ao longo de 2021. E os negócios que dependem dos estrangeiros talvez não consigam sobreviver. A Extragreen Holidays, que oferecia passeios em mandarim e tinha nos clientes chineses cerca de metade de sua clientela, despachava de 16 a 20 ônibus por semana para a Great Ocean Road durante a alta temporada. “Agora, se for um dia de sorte, fazemos um tour de um dia por semana, com menos de dez pessoas”, disse Tom Huynh, gerente geral da Extragreen.

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Huynh disse que a empresa, que começou em Melbourne em 1994, cancelou o seguro e o registro de seus cerca de vinte ônibus, os quais estavam parados num depósito. No final de fevereiro, Huynh disse que a empresa tinha pedido falência e que os funcionários estavam sendo demitidos, incluindo ele próprio. Max Zaytsev, que oferece passeios com a Bilby Travel, que tinha uma clientela principalmente dos Estados Unidos e do sudeste asiático, não perdeu tempo tentando se adaptar.

Zaytsev tem quatro microônibus de luxo que comprou a crédito antes da pandemia e pelos quais precisa pagar altas prestações mensais. No que ele descreveu como “uma jogada desesperada”, Zaytsev tentou se redirecionar para o trabalho de transporte – arrancando os assentos de um de seus microônibus e enchendo-o com pacotes para entrega – mas disse que não estava ganhando o suficiente. Aí ele tentou diversificar mais uma vez: em abril, solicitou um certificado para abrir uma empresa de transporte para deficientes com seus ônibus, pagando cerca de 5 mil dólares australianos (cerca de US$ 3.850) em taxas. “Você sabe quantos trabalhos consegui? Nenhum, zero”, disse ele. “Eu estava tentando fazer tudo o que podia”.

Como muitos australianos com negócios ou empregos afetados pela pandemia, Zaytsev, que mora em Melbourne, recebe do governo, a cada duas semanas, um auxílio chamado JobKeeper, no valor de 1 mil dólares australianos (US$ 770). Mas o programa para manutenção do emprego deve expirar no final de março. “Parece que só estamos vivos porque estão nos pagando o JobKeeper”, disse Zaytsev sobre empresas de turismo como a sua. “Somos empresas zumbis”. (Tacey Rychter)

Tradução de Renato Prelorentzou

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