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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

Uma viagem de cada vez

Quando tudo isso for uma questão superada, a gente vai se sentar e organizar uma coisa que você amava: uma viagem

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Por Gilberto Amendola
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'Pensa, uma viagem! Tem um mundo inteiro te esperando, filho' Foto: Roger Gailland

Levante da cama. Mesmo sem vontade. Escove os dentes. Mesmo sem vontade. Tire o pijama. Mesmo sem vontade. Entre embaixo do chuveiro – mas antes certifique-se que já está sem as meias (você dorme de meias que eu sei). Tome um café da manhã reforçado. Mesmo sem fome. Abra as janelas para arejar a sala, o peito e a vida.

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Chame o elevador. Não se preocupe com os sons do corredor. Não precisa apertar o botão mais de uma vez. Se encontrar com algum vizinho, tente um “bom dia” – seguido de um sorriso. Não precisa conversar, um “bom dia” basta. Se não souber o que fazer com as mãos, leve um celular com você. Se sair primeiro, segure a porta para a outra pessoa. Se sair depois, agradeça a gentileza.

O porteiro pode ser indiscreto. Ele vai demonstrar espanto em te ver. Não se preocupe, ele não faz por mal. São quantos meses sem sair do apartamento? Outra vez, não esqueça do “bom dia”. Ele vai abrir a porta e logo você estará na calçada. Não, prometo, não vou segurar na sua mão.

Não tenha pressa. Respire. Vamos até a esquina. Um passo de cada vez. Alguém pode perguntar as horas para você. Alguém pode esbarrar em você. Um cachorro pode cheirar o seu tênis. No mais, são barulhos de uma cidade. O som dos carros, as buzinas, aquela algazarra de crianças no pátio da escola, latidos, freadas, risadas...

Quer atravessar a rua? Vamos lá! Lembra do lance do “vermelho, verde e amarelo, não é”? Eu sei, eu sei, foi uma piada. Era pra você rir também. Na faixa, por favor. Desculpe, foi mais forte do que eu. Vem, me segue... Do outro lado da rua tem uma sorveteria.

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Sei que não é mais criança. Chocolate? Você sempre pediu sorvete de chocolate. Vou pegar um para mim.

Amanhã, vamos sair de carro. Não sou o melhor motorista do mundo, mas quebro o galho. Nunca bati... Ok, verdade, você tinha 10 ou 11 anos, estava no banco de trás e eu dei uma batidinha de nada no carro da frente. O sujeito fez um escândalo, mas não foi nada de mais. Acho que você se assustou e chorou um pouco.

Depois, que tal uma visita ao Parque do Ibirapuera? Você gostava de lá, lembra? Podemos correr um pouco. Apesar da idade, ainda tenho fôlego pra te acompanhar. Assim como eu, você também está um pouco fora de forma. Pago o almoço dessa vez. Mas não vá se acostumando. Quando você voltar ao trabalho, eu cobro uma visita naquele restaurante que é uma fortuna. Não faz essa cara. Você vai voltar a trabalhar, claro que vai. Um dia você vai!

E depois de vencer a vontade de ficar na cama, você vai perder o medo da rua, dos barulhos, dos vizinhos... A doutora falou dos seus avanços. Agora, é questão de tempo. Do seu tempo. Todo mundo já entendeu que você está se esforçando. 

Quando tudo isso for uma questão superada, a gente vai se sentar e organizar uma coisa que você amava: uma viagem. Tem algum país que ainda queira conhecer? Quer voltar para algum lugar? Ou podemos aproveitar uma praia aqui no litoral mesmo...

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Ai, eu sempre me lambuzo tomando sorvete. Quase 60 anos na cara e ainda me sujo todo! Sério, eu ainda não tenho maturidade para tomar sorvete na casquinha.

Mas voltando ao nosso assunto. Pensa, uma viagem! Tem um mundo inteiro te esperando, filho. Tenho uns guias de viagem para te emprestar...

Não, não. Não estou te pressionando. Mas seus olhos brilham quando falo em viagens. Puxou o pai. Antes de casar, eu tinha rodinha nos pés... Sempre que sobrava uma grana eu inventava um destino novo.

Claro, se quiser, pode ir sozinho. Mas se precisar de companhia conte comigo. Tá bom, pensamos nisso outro dia. Agora, vamos fazer o caminho de volta. Vai na frente. Estarei por perto, filho.

Vamos fazer isso mais vezes. Continue tentando. Sair para tomar um sorvete todo dia já é um progresso. Não esqueça de olhar ao redor, respirar o ar da cidade. Você tem uma vida inteira pela frente. Ah, não esqueça dos remédios também.

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Só mais uma coisa: te amo. 

*Envie sua pergunta para viagem.estado@estadao.com.

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