Zarparemos com a primeira neve 

“Minhas mais belas lembranças são vinculadas à navegação no canal de Beagle naquela manhã fria, na qual estávamos cercados pelas encostas nevadas dos montes elevados. Vi baleias, toninhas nadando ao lado do barco, pôr e nascer do sol lindos, e o céu.... sempre com infinitas estrelas!” - Tiago Scannavaca, jovem marujo e arquiteto. 

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Por Ramon
Atualização:
Viagem de três semanas rendeu ótimas fotos, além de muitas emoções Foto: Roman Nemec

Da Antártida sopra um vento frio e acentuado e a baixa temperatura é marcante. Uma geada sucedeu os dias quentes de outono. Por causa do tempo não favorável e de ventos fortes de até 55 nós, a data de partida foi adiada em dois dias.

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No sábado, depois da demorada burocracia de imigração, todo mundo decidiu se encontrar à noite no salão aquecido no segundo pavimento do barco Endurance. Com um pudim quente e com rum nas mãos, Marcão conta sobre a previsão do tempo para os dias seguintes e, a partir disso, definimos as tarefas de partida.

Às 5 horas do dia seguinte, sou acordado pelo despertador e, ainda com sono, preparo o café da manhã para os tripulantes. O cheiro de café preenche o barco inteiro e, gentilmente, acorda todo mundo. Um gelado vento austral sopra e faz voar flocos de neve. Com o céu ainda escuro e a maré baixa, zarpamos. As montanhas ao redor estão levemente polvilhadas com a primeira neve deste ano. Olhando através da popa, à distância brilham as luzes do Ushuaia, onde deixamos um pedaço de nós mesmos e para onde sentimos que um dia teremos de voltar. 

Amanhece um novo dia gelado e cinzento. O frio entra sob a pele e, sem adequadas roupas náuticas, seria quase impossível ficar fora ou fazer qualquer coisa. Os dedos ficam frágeis enquanto os cabos tornam-se sólidos e gelados. Ainda assim, uma grande vantagem do nosso barco é a ponte de comando fechada com uma vista panorâmica, onde temos autopilot, radar e outros aparelhos de navegação. De lá é possível manobrar o barco, por exemplo, durante uma tempestade ou com o mar muito agitado, exceto as velas.

Todos estamos no convés observando encantados a beleza única do canal Beagle. Às vezes pula d'água uma baleia, ou um pinguim, que sem o menor esforço se deixa levar pelas correntes marítimas, acenando para nós. De repente o motor para e os sorrisos desaparecem do rosto animado dos tripulantes. Será que pifou? O capitão, alarmado, distribui comandos para ajustar as velas e mergulha no eixo do motor. Depois de um tempo, estabilizamos o barco e Marcão, muito suado, anuncia que trocou o filtro de combustível. Então ouvimos o murmúrio monótono do motor Yanmar de 200 cavalos e começamos a navegar com a velocidade de 9 nós. No início da noite, a velocidade do vento aumenta e as rajadas chegam a 45 nós. A vela maior já está risada no máximo e o mar e os ventos balançam o barco de lado a lado, fazendo a maior parte dos tripulantes vomitarem e sumirem para suas cabines. 

Na madrugada, no estreito entre as ilhas Las Naciones e Terra do fogo, levantam-se ondas “confusas” de até 5 metros de altura. O barco gira como se estivesse nas mãos de um kraken e, como se não fosse já o suficiente, o mar cobra sua primeira “taxa”: Lauro, o contramestre, durante sua vigília noturna, de repente sente um odor parecido com o de fios queimando. Ele e Marcão abrem uma cabine atrás da outra até acharem, na cabine das meninas e dos irmãos Roberto e Jorge Bins, uma gaiuta aberta.

Cabines inteiras e todas as coisas estão molhadas de água salgada. Como as bombas automáticas no porão pararam de funcionar, não tem outro jeito a não ser bombear manualmente dúzias de baldes para fora do barco. Assim que se sentam para descansar, o motor para de novo . “Que inferno, é isso!”, reclamam os dois e acordam a mim, Tiago e Lauro e para arrumarmos as velas e velejarmos para alto mar, bem fora da costa. Lauro, já bem exausto, fica sentado coxilha. Eu fico controlando o rumo e o chart-plotter e vejo que estamos voltando para o maldito estreito, mas corrijo o rumo com o leme e as velas. De manhã, mais tarde, as meninas entendem que as camas e todas as coisas delas estão ensopadas, mas Marcão gentilmente cede sua cama para elas. E depois do “sangramento” da mangueira de combustível e da troca de filtro, magicamente o motor liga de novo. “Mas por quanto tempo?”, nos perguntamos. “No mar, longe da terra, você tem de ser ‘MacGyver’, consertar o motor com um grampo, remendar uma vela com silver tape, e sempre pensar antes de agir”, comenta o capitão sorridente, que realmente sabia como lidar com situações difíceis. 

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